UM PEQUENO PRÍNCIPE NO CENÁRIO BRASIL

Aconteceu...

Ali o espaço também poderia ser uma rua duma grande capital como São Paulo ou uma pacata ruela duma cidadezinha do interior; poderia ser uma calçada de semáforo, uma viela duma comunidade, um beco da noite promíscua, uma vitrine num shopping de elite, a esquina duma avenida movimentada , uma rodovia erma, até um consultório, enfim, qualquer espaço em que a vida o escolhe para protagonizar seus reais personagens surreais e inesquecíveis.

Eu, então, daquela vez estava ali a apreciar a aparente tranquilidade da paisagem de praia, com aquele marulhar já mais intenso da maré pós meio dia, amparada do sol a pino por um telhado dum pequeno restaurante a beira mar, entrelaçado com "paia seca de coqueiro", a degustar um suco de graviola doce e bem gelado cujo sabor indescritível tinha o gosto dum Brasil bem diferente, quiçá algo mais palatável.

De repente ele, que poderia me ter encenado uma versão bem brasileira do "Pequeno Príncipe" através daqueles seus ainda olhos meigos, ali me abordou pela areia em contato com a parte aberta do recinto gastronômico para encenar sua vida de abandono.

Se eu tivesse nascido ontem e ainda não tivesse lido "O pequeno príncipe" talvez tivesse a alegria de não sentir de imediato que sua fala era bem ensaiada, recitada numa mensagem verborreica, muito rápida, sem pontuação e tão prolixa que mal me permitiria compreender sua real intenção, não fosse o fato de eu , infelizmente, não ter nascido ontem e já ter relido o "pequeno príncipe".

Assim, ágil e espertamente inteligente ele me jogou uma "rosa verde":

-Ô dona pelo amor de Deus tô com muita fome preciso de oito reais para comprar meu marmitex se a senhora que é "pessoa do bem e não olha a quem que tem bom coração para com os meus pés no chão" me arrumar o dinheiro eu juro que venho mostrar a comida aqui para senhora e vou comer ela todinha juntinho de ti porque to mentindo não é fome como é a fome sua dona é igual mesmo minha barriga tá até roncando pode ouvir olha aqui pelo amor de Deus me ajuda...

Obviamente que, por ele já me ter cativado, imediatamente me perguntei que tipo de gente seria eu se não me tornasse responsável por ele e pela fome dele.

Afinal, era só uma criança de oito anos que já se dizia na escola pedindo comida de maneira poeticamente inusitada, não se tratava de esmola, a tão repudiada por todos aqueles que comem três vezes por dia.

Ademais, num país rico, sem pobreza, em que a fome tem que ser zero por qualquer custo ou caminho não seria eu a não dar minha contribuição ainda que fosse ali na praia. Mesmo assim argumentei:

-Olha lá hein, será que você não está me enganando, será? É para o marmitex mesmo?

É sim dona eu juro pra dona que é logo ali que eu compro "sempre" olha lá eu vou num pé... compro e volto no outro aqui com a comida.

Abri a carteira e ele rapidamente percebeu que eu só tinha dez e foi super rápido na solução dum problema que me pareceu bem costumeiro.

-Eu volto com o seu troco dona pode confiar.

Olhei bem para o "meu pequeno príncipe" e lhe falei assim:

-Olha bem aqui para meus olhos, vou confiar em você, ok? Fico aqui esperando você voltar com a comida e com o meu troco.

Assim ele se foi pela areia, bem devagar para quem estava com tanta fome e sob a minha certeza que não voltaria nunca mais, todavia, cinco minutos depois ele voltou com os dez reais na mão.

Surpreendentemente o pequeno príncipe era muito mais esperto em criar estórias do que imaginaria minha vã literatura de vida:

-Dona o marmitex acabou de acabar a senhora que sabe pode ficar com o seu dinheiro mas se deixar ele comigo eu arranjo mais uns troco e logo ali no supermercado compro para a minha mãe dois quilos de feijão mais dois de arroz mais dois de batata e dois de jabá.

Mais uma vez me auto castiguei já que aprendi que " para enxergar claro, basta mudar a direção do olhar".

Afinal, que tipo de brasileira seria eu que, ali a esperar pelo meu peixe grelhado recém chegado do mar, ousasse pegar de volta dez reais duma criança de oito anos com fome de tudo e sem marmitex, ainda mais decidida a fazer o supermercado para sua mãe em plena "inflação de vida " que em poucos minutos de tempo vivido já lhe consumira seu destino para sempre?

Ali percebi que a inflação sobre aquelas moedas era a que menos importava numa cena de infância mais que explorada e negligenciada.

Se ele me enganaria ou não já não seria o mérito àquele triste desfecho de mais um capítulo inaudiente que em nada mudaria seu epílogo social...nem ao meu.

Numa quase oração de intenção por aquele meu pequeno príncipe da praia eu lhe doei minhas "rosas" a lhe desejar boa sorte nos próximos capítulos do seu jardim de areia.

Quem sabe "o tempo dedicado àquelas flores o faria uma rosa mais importante... dali adiante", pensei.

-Brigadú dona!-ele me exclamou com os olhos brilhantes, cheio de contentamento.

Foi ali, relendo mais uma vez a obra de Antoine Saint Exupéry, ao vivo e em desbotadas cores pelas praias dum país tropical, que entendi o quanto somos todos precocemente responsáveis pelos nossos tantos pequenos príncipes das atuais páginas do nosso cenário Brasil.

Porque Saint Exupéry também sentiu e escreveu que:

"O amor não consiste em olhar um para o outro, mas sim em olhar juntos para a mesma direção, na tentativa de enxergar que, de fato, o essencial que é invísivel aos olhos... só se enxerga com o olhar do coração."