UMA PRECE PARA KALLINA

MAURO MARTINS SANTOS

É na dialética da vitória e da derrota que se abre a possibilidade para a reflexão e para a alteridade que erige um mundo um novo homem.(mms)

O Bem e o Mal podem, e são, vistos de inúmeros ângulos. Um mal que se coloca como pior de todos é a hipocrisia, que biblicamente não é perdoada nem na terra nem no céu.

Vistos de qualquer lado o fenômeno é um só. Regimes políticos. Guerras. Seitas e religiões. Ganância e poder. Interferências e omissões permeadas de quem intervindo, travestem o bem e arrostam o mal.

Uma jovem grávida por estupro de seu algoz mediante humilhante tortura. Seus pais e seu irmão de olhos no horizonte da liberdade, eliminados pelas costas, pelo regime que usa a carnificina como a dona de casa usa o espanador.

Kallina Stenovic. Total abandono. Já não tinha onde estar senão ficando com um namorado, que a abandona por desconfiança. Não só desconfiança, mas pela gravidez ter sido de homem de outra etnia separatista, e ele positivamente não queria ver a cara de um étnico inimigo. Preferia a morte!

O emprego é raro. Para ela nenhum, dada a sua situação perante as mulheres de sua própria etnia, como sendo: "ordinária", "porca", "coisa à-toa". Não a viam como vítima e sim como uma cedente devassa.

Escorraçada por uma sociedade que sofreu os horrores da rejeição dos próprios irmãos, que até ontem eram uma só nação, agora rejeitando-se uns aos outros e matando-se friamente até enquanto dormem; crianças e velhos, nada importa: só o ódio racial. Rememoremos isso. Morreram milhares entre civis e militares. Tudo era alvo, desde que se movesse.

O governo de seu país está sonhando com as benesses de um regime defunto.

O ser é frágil, seres frágeis diante da áspera luta do mundo e de todos. Sobrevém-lhe o desesperado pensamento de abortar. Ato clandestino, doloso, pecaminoso, a todos os olhos que chegam confortavelmente sempre depois dos fatos ou, deliberadamente força desconhece-los. Atendimento ambulatorial: poeira no ar, forte cheiro de coisas químicas queimando por todos os lados no quarteirão, carros e pneus incendiados trapos revestem camas enferrujadas e de improviso. Explosões ensurdecedoras de bombas, gritos de agonia de moribundos, e muitos cadáveres, espalhados no que fora uma enfermaria e pelas ruas. O odor de putrefação era insuportável. O prédio onde Kallina ingressa tem a metade destruída por bombas. Desamparo, hesitação, desapego à própria vida, aos estudos...

Kallina Stenovic cursava o terceiro ano de uma universidade estatal. A criatura passa a ter um nome somente para seus acusadores de todas as ordens. É atirada ao fundo de um vácuo de solidão e amargura, de onde se olha para cima e vê o céu muito pequeno.

Melhor que tivesse sido vítima de um homem-bomba, do que de seu algoz, e agora esta paralisia que lhe sobreveio não sabendo de onde, tomando todo seu corpo, agravada pelas condições do local e do abandono. Abandono - como os acusadores rotulam - para: pagar "seu crime" "seu pecado".

Sua vida, que teológicamente deveria ser elevada ao patíbulo da compaixão, é jogada ao inferno sem escala no purgatório.

O inferno a que nos atiram muitas vezes, ao contrário do que pensam é silencioso - destarte o eclodir de bombas lá fora - repleto de vários inquisidores à meia voz. Só não usam - por não poderem ser ostensivos - instrumentos de tortura. Mas usam outras técnicas, cores e ritos, perigos físicos e garrote moral, que faz recair o peso colossal de uma instituição sobre sua mínima e insignificante vítima.

Kallina Stenovic, reabilita-se da paralisia. Menos mal. Mas sai do caudaloso inferno opressivo uma velha de 20 anos. Não tem mais sonhos. O vórtice da realidade que lhe foi imposto, ocupará todos os restantes anos de sua vida. Não há como não ser! Nada a assistiu, nada a conduziu para seus sonhos de criança e adolescente que acreditava na existência do amor. Amadurece dezenas de anos em dias.

Nesse duplo processo contraditório onde somente se litiga o poder, a conquista, o dinheiro um mercadejar de vidas, litigando utópicos caminhos, perdeu-se uma alma. Perdem-se almas! E fica no ar quem são esses que abortam as almas humanas? Quem são os reais aborteiros, os da vida ou os da alma? Qual a maior desgraça, maldição talvez? - Abortar a alma das pessoas humanas!

A vida de Kallina Stenovic, ficou não só no que está implícito ao que lhe aconteceu, no que lhe ficou impresso na mente, visível no suporte do quadro, mas também naquilo que gravita fora, pelos cantos, tudo aquilo que lhe influi diretamente, sem o que, o quadro não haveria e não se perderiam a esperança e... os sonhos de Kallina.

Mauro Martins Santos
Enviado por Mauro Martins Santos em 02/05/2013
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