Causos de Linguagem

Tema 2

AS ARMADILHAS DE NOSSA LÍNGUA PORTU... QUER DIZER, BRASILEIRA

(Vicência Jaguaribe)

O grande fosso que separa, no Brasil, as línguas dos iletrados e dos pouco alfabetizados das línguas das camadas mais letradas — Falo em línguas porque uma língua nacional se compõe de uma variedade de registros. — é a prova de que neste país se faz pouco caso da educação. Mas é, também, ao mesmo tempo, poço de indignação para puristas e de aborrecimento para professores. Ainda inesgotável fonte de situações engraçadas, que põem um pouco de sal na insipidez do discurso único.

Sem dúvida, porém, nas armadilhas que a língua brasileira apronta, não caem só analfabetos ou quase. A última flor do Lácio transplantada para o Brasil prepara ciladas para todos os seus usuários

Quem já ouviu falar na síndrome do professor de português? É algo muito sério, que pode levar à neurose. Às vezes, até inconscientemente, analiso os textos dos noticiários e comerciais da tv. Olho as placas do comércio e as da sinalização do trânsito. Tenho vontade de tentar fazer, ao pé da letra, o que recomendam algumas delas: “Dobrar a esquerda” ou “Dobrar a direita”. Sei que, para muitos, até para alguns escolarizados, é difícil distinguir “Dobrar a esquerda” de “Dobrar à esquerda”, ou “Dobrar a direita” de “Dobrar à direita”. Mas, pelo amor de Deus! Custava ao poder público contratar um profissional competente para fazer revisão desses textos?

Um dia desses, reclamei, ao gerente de um supermercado, de umas placas que seguiam este modelo: “CD à partir de R$19,00”. O gerente me olhou com cara de quem é flagrado em pecado: — A senhora acha mesmo que as placas estão erradas? Minha resposta foi lacônica: — Eu não acho, não. Tenho certeza. E ele replicou: — Mas essas placas vêm de São Paulo. — E daí? Em São Paulo também se erra. Nada mais disse porque nada mais me foi perguntado. Adiantaria querer explicar alguma coisa?

E, quando o desacerto envolve a semântica — a significação de um vocábulo ou de um enunciado inteiro —, aí temos muito do que rir. A tia de uma conhecida era casada com o diretor de uma escola. No começo do ano, os alunos recebiam o tecido do fardamento, que os dois, marido e mulher — ele, muito sério; ela, alegre e solta, mas também muito distraída —, iam comprar. Certo dia, em plena loja: — Raimundo, se der mais de Cr$500,00, tiro as calças. O vendedor deixou entrever um sorrisozinho maroto. Raimundo, sério, olhou para a mulher: — Cristina, que história é essa de tirar as calças? — Sim, subtraio o valor das calças.

Uma amiga hospedou uma pessoa simples do interior, com quem teve um diálogo hilariante, que prova como é importante o falante conduzir o discurso considerando o perfil do interlocutor. À hóspede — ou hóspeda? —, que elogiava a mãe, bem disposta apesar dos noventa anos, fez uma pergunta: “Lúcida?” E a resposta: “Não, Maria do Carmo”. Quem mandou minha amiga empregar um vocábulo que não consta do acervo vocabular do povão?

Outra amiga, também professora de português, com pós-doutorado em linguística e tudo, viveu uma situação curiosa. Ao entrar num avião, viu uma senhora fardada na cabine de pilotagem. Perguntou-se: “Então, é ela a... a... a... Qual será mesmo o feminino de piloto? Pilota? Ah! Não. Não quero viajar em um avião pilotado por uma pilota, não”. Depois, olhou no Houaiss e estava lá: “Novos ofícios desempenhados por mulheres fizeram que este voc. tradicionalmente do gênero masc. passasse a ser us. tb. como fem.”. Exemplo: as pilotos da Força Área Brasileira. Falava, portanto, dos substantivos de dois gêneros.

É isso, por mais que certas pessoas não entendam, há mais de uma língua nacional. A língua é um organismo vivo, que sofre mudanças e adapta-se ao meio em que é usada. É, portanto, do povo e somente o falar do povo a transforma. Ninguém tem competência ou poder para evitar esse movimento. Por outro lado, só a boa educação, que nós não temos, é capaz de aproximar os vários falares de uma língua.