Da nossa velha infância
Quando assisti às cenas finais do filme “Dois Filhos de Francisco”, fiquei muito tocada pelas expressões de saudosismo de Zezé Di Camargo ao retornar para o lar paupérrimo onde passou a sua primeira infância. A emoção exprimida pelas lágrimas e narrada com voz embargada, não remetiam à tristeza pelas extremas dificuldades financeiras as quais a família simples havia sido submetida. Muito pelo contrário, embora hoje um milionário famoso, Zezé foi categórico em afirmar que a melhor fase de sua existência havia sido vivida sob aquele teto.
Para os mais céticos, ou os que se perderam em suas lembranças, a declaração pode soar um tanto demagoga. Quanto a mim, nunca duvidei da sinceridade de suas palavras.
Quando escutamos alguém falar sobre sua infância, geralmente a fala é carregada por uma entonação de saudade. Ainda que esta tenha sido marcada por muitos obstáculos de ordem material, o que em nosso país é uma realidade bastante comum, mesmo assim, ela é relembrada como a melhor fase das nossas vidas.
Não sou estudiosa no assunto, não tenho teorias cientificamente embasadas. Mas arrisco-me a afirmar que uma das principais razões para adorarmos nossos tempos de criança, seja pela paradoxal sensação de autonomia.
É estranho, já que como crianças, somos quase que totalmente dependentes. Em todos os aspectos, materiais e emocionais. Não decidimos quase nada, sequer o que vamos comer. Não somos donos de nossos passos, não podemos ir para onde bem entendermos. Devemos satisfação sobre quase tudo e omitir-se quanto a aspectos rotineiros, pode render sermões e castigos.
No entanto, a despeito de toda essa dependência, tenho a curiosa sensação de que esta é a etapa da vida em que somos mais donos de nós mesmos.
Uma criança não é refém de nada, a não ser dos próprios desejos.
Uma criança não tem planos, não traça metas, não relaciona objetivos nem almeja sucesso. No entanto, quando acorda, sabe exatamente o que tem a fazer: viver! Descobrir, explorar, aprender, conhecer... sem regras, sem planejamento, apenas pelo prazer, pelo impulso de realizar.
Uma criança não tem controle financeiro, não administra patrimônio. Mas é capaz de encontrar valor inestimável em pequenas coisas. Transformar pedras coloridas em tesouros valiosos.
Uma criança não tem vizinhos. Não tem colega de sala. Não tem parceiro de trabalho, nem companheiro de farras. Tem amiguinhos, tão somente, que ele pode nem se dar ao trabalho de nomear desta forma, mas que são, de fato, amigos.
Uma criança não lê livros de autoajuda. Não recorre a mensagens para elevar a autoestima. Não consulta “gurus” para ensinar-lhe fórmulas infalíveis para lidar com suas instabilidades emocionais. Quando sente vontade de chorar, chora! E dali a 5 minutos, algo lhe distrai e ela está sorrindo sem se dar conta do quanto esse comportamento pode soar bipolar!
Acima de tudo, uma criança não se preocupa em parecer feliz, ela É feliz! Da forma mais singela, sem complicações. Pergunte a uma criança a razão de sua felicidade e ela não saberá explicar. Não da forma “transcendental” e definitiva que você certamente espera ouvir. Pode ser por causa de um sorvete, por um inesperado banho de chuva e até por uma raladura no joelho depois de ter brincado com a bicicleta nova do coleguinha. Vai saber!
Mas essa fase passa. E nos tornamos ADULTOS, autônomos, donos do nosso nariz!
Temos dinheiro, fruto do trabalho. Podemos comprar aqueles gibis que tanto cobiçamos na infância, ou aquele carrão da Barbie, que um dia juramos comprar, quando fossemos GRANDES e tivéssemos “dois dinheiros”. Mas hoje é mais urgente adquirir livros de autores respeitáveis para transpirar intelectualidade durante uma conversa informal numa roda de amigos, ou, ainda mais importante, um carro confortável, do ano, com Air-Bag e freios ABS de última geração que, em caso de acidentes por excesso de velocidade, salvem nossas preciosas vidas. Sabe como é, esse trânsito de hoje tá um loucura!
Adultos, estamos emocionalmente maduros, plenamente capazes de dominar nossos sentimentos. Não nos apaixonamos perdidamente pela professora da 5ª série. De jeito nenhum, não somos mais reféns de “sentimentos infantis”. Buscamos alguém que “acrescente”, um parceiro que venha somar em nossas vidas, que caminhe lado a lado, desde, é claro, que se mantenha o cuidado de manter a autoestima sempre elevada, ficar sempre por cima e jamais permitir que o outro “monte” na gente.
Para o caso de CONQUISTARMOS um relacionamento “sólido”, estável, é imprescindível vivê-lo como manda o figurino. Temos de ser plenamente FELIZES, senão não vale a pena. E o principal, temos de PARECER felizes, radiantes, completos e seguros! Senão, o que os outros vão pensar desse casamento? Que é apenas uma união de fachada?
Se o casamento “de papel passado” parece um passo sério demais, vamos “apenas” morar juntos, dividir a rotina todo santo dia. Se não der certo, é muito mais fácil separar, porque nessa história de divórcio, coração partido é só um aspecto secundário, frescura passageira! O que conta mesmo é a divisão dos bens.
A solteirice não é uma opção ou um momento, é um estilo de vida! Cultuado, propagado. Coitados dos casados, não sabem o que é felicidade. Não existe solidão, não existe vazio, é uma eterna festa. E os “amigos” precisam perceber esse estado de graça para corroer-se de inveja.
Um diploma universitário é mais do que uma obrigação. É praticamente o mesmo que ser alfabetizado há algumas décadas. Fundamental! E não basta ter um diploma qualquer, tem de ser algo que esteja em ALTA no mercado, um curso valorizado, ainda que você não tenha qualquer vocação para a área. O importante AGORA é ganhar dinheiro! E guardá-lo, ter uma previdência privada, já que a social está falida. Garantir o seu “futuro” que ainda nem foi escrito e deixar para fazer, na velhice, aquilo que gostaria de fazer hoje, quando se está cheio de gás, mas que não pode desperdiçar tempo nem energia com um desejo “sem futuro”.
Enfim, como adultos, somos pessoas responsáveis, DONOS do nosso destino! Podemos fazer tudo. Aliás, temos a OBRIGAÇÃO de fazer tudo e mais um pouco. Nosso tempo deve ser bem ocupado, com atividades úteis, passos bem calculados. Os sentimentos dão lugar à razão. Ou pelo menos, é assim que deve ser! Infantilidade é algo digno de reprovação, um atraso na vida de qualquer ser humano. E como todo atraso, deve ficar para trás... Apenas nas lembranças. Ainda que essas recordações perdidas nos despertem sentimentos tão marcantes e provoquem uma saudade tão profunda, que daríamos tudo para voltar lá outra vez!