Pior sem ela.
Por Carlos Sena


 
Acho que “tirar do baú” velhas lembranças é estar de bem com a vida. Com a vida nos seus três tempos: passado, presente e futuro. Domingo tem um pouso dessas características, qual seja de nos transportar na tridimensionalidade do tempo e deitar e rolar sobre ele. Se só der pra  deitar sem rolar, já está de bom tamanho. Nesse caso, melhor deitar, porque a gente só precisa da imaginação, ou da imagem nação? No trato da imagem nação, lembro-me da bodega dos tempos de criança no  interior de Pernambuco. Ela, a bodega, era o centro das nossas angústias e aflições. Guardadas as devidas proporções era o “supermercado” de hoje. Tudo muito artesanal, tudo muito cara a cara, tudo muito cheio de “tudo um pouco”... A bodega era pra nós, da cidade, o que o “barracão” era para as pessoas das usinas, dos sítios. A gente ia comprar na bodega uma quarta de bacalhau. Meio copo de azeite doce – imagino que era algo como o nosso azeite de oliva hoje. Cem gramas de queijo, meia quarta de charque. Lembro que mamãe mandava a gente comprar bacalhau. Que vergonha a gente sentia. Porque comprar bacalhau era comprar comida de pobre. Mas, o que não poderia faltar de jeito nenhum era a “pior sem ela”. Não sabe? Era uma sardinha que ainda hoje existe. Eram vendidas numas latas grandes de dez quilos próprias para ser vendidas a granel. O grande detalhe é que a “pior sem ela” continha mais sal do que sardinha. Quando ela era assada na brasa, a vizinhança inteira ficava sabendo que a coisa ali naquela casa não estava boa. Comer “pior sem ela” é como o nome já diz: pior sem ela. Outro diferencial piorado da danada da “pior” era que quem a comesse no almoço não deixava de tomar água o resto do dia. Depois que a bicha era assada, ou frita, outro trabalhão: retirar o mau cheiro que ficava na casa inteira, na cozinha especialmente. Nessa época, acredite, o bacalhau perdia para a sardinha. Ele, o coitado do bacalhau que hoje é comida de rico, naquela época  era comida de pobre. Lembro-me que as bodegas não deixavam de vender linguiça e carne de charque. As linguiças ficavam dependuradas nas portas e nas janelas, como que fazendo o marketing do produto. Sacas de feijão, farinha, milho e arroz, eram postos enfileirados para todo mundo ver. Comprava-se tudo a granel – diferente de hoje que tá tudo embalado em pacotes e outras formas modernas nos supermercados.  Outra característica das bodegas (lembro como se fosse hoje) era o pagamento por mês. A gente ia com um caderninho e o dono anotava tudo que era comprado no nosso caderno, mas ficava com o caderninho dele para controle. No final do mês, na hora do pagamento, ele somava o dele e nós o nosso. Muitas vezes nem “batia”, porque ocorria de uma comprar ter sido anotada num caderno e noutro não. Muitos bodegueiros faliam, mas outros se davam bem. Outra característica das bodegas: “FIADO SÓ AMANHÔ. Pura mentira. Bodega que só vendesse a vista não era bodega, porque nem chegava a existir. Vinho? Lá também vendia, mas o de Carreteiro ou o de Jurubeba. Juro! Beba – Jurubeba – a nossa bebida principal. Mas o que se vendia mesmo por lá no quesito bebida era a “misturada”: num litro se colocava todo tipo de raiz misturado com cachaça. A matutada delirava, mais parecia que estavam gozando com a mais linda mulher... Depois vinha a cuspida no chão, e a mão no bolso para pagar. Isso quando não ia para o “pendura”...
O dono da bodega sabia de tudo que se passava nas redondezas. Quando alguém queria perguntar alguma coisa da cidade ou sobre alguém conhecido, perguntava ao dono da bodega. Não obstante, virava ponto de referencia. “Depois da bodega de seu Manoel, entra a direita”, etc. Hoje não sei se ainda tem bodega nesses moldes, pois as cidades têm agora mercadinhos e até supermercados. Outra coisa bem característica das bodegas era o miudinho mesmo. Poucos compravam como hoje: “compras do mês”... Estocar? Pra quê? Como? Nem geladeira se tinha, exceto aquelas a gás que nem existem mais hoje. Comprava-se um ovo, meia cuia de farinha, cem gramas de torreiro, dez mil réis de brebote, de cravinote, de tudo...
Para finalizar o “set” dessa novela que a imaginação gravou em vida sem tape, lembro que no almoço do domingo a gente comia galinha. Guaraná ou Coca-Cola? Só se a gente tivesse doente. E como eu gostava de bebê-las, mesmo quente pois como disse, poucos tinham geladeira. Galinha era tão coisa fina que diziam uma piada mais ou menos assim: “quando pobre come galinha um dos dois tá doente”... A gente comprava na feira a penosa viva, matava e fazia guisadinha. Como não tinha Coca-Cola a gente tomava “ponche”. Pra quem não sabe, ponche é a laranja espremida e misturada com muita água – diferente do suco que quase não se põe água. Por hoje é só. Pois falando dessas recordações a boca tá cheia d’água e eu sinto o cheiro da “pior sem ela” no olfato imaginário do tempo que a gente pensa que passa, mas ele apenas perpassa por nós... Sempre.