Espectador da vida alheia
Lá está ele outra vez. O sapateiro está acocado na entrada da sua sapataria. Em questão de poucos minutos, chega junto à porta umas seis vezes. Apesar de estar sempre com o cigarro na mão, nervoso ele não é não. É até calmo demais. De olhos castanhos esbugalhados, emoldurados por um rosto magro e comprido, está ele sempre conferindo o movimento da rua. Seus poucos cabelos em desalinho e suas roupas amassadas conferem-lhe um visual desleixado. Obviamente, desleixada também é sua sapataria. Organização e limpeza são palavras que ele desconhece. Motivo pelo qual a clientela praticamente não existe. Ao lado da escada de três degraus, junto ao chão, que não é calçado, tocos e mais tocos de cigarro a denunciar seu vício. Olha aí ele outra vez, não falei!
Passam-se os dias e o sapateiro segue sua rotina. Até que, certo dia inicia uma chuva que irá estender-se por toda semana. São Pedro abriu as torneiras e parece que esqueceu de fechar.Supõem-se que devido à chuva, o sapateiro tenha tirado umas férias por conta própria. Permanece fechada a sapataria, já fazem uns dez dias. Sabe-se lá... ó Deus onde anda o dito cujo. Talvez em casa dormindo. Sei lá.
Amanhece um novo dia. no horizonte o sol timidamente parece ensaiar os primeiros reflexos. Apesar das poças d`água ainda pelo chão, o dia promete ser, até que enfim, ensolarado outra vez. Os passarinhos estão em festa, o verde mais verde. A pacata cidade começa a movimentar-se. É o jornal que está sendo recolhido, é o trabalhador que passa apressado, é o estudante que passa também. Entre os transeuntes, lá vem ele, o sapateiro "trabalhador". E vai ele como de costume. Apesar de estar beirando os sessenta anos, continua pedalando sua bicicleta. Sempre sem pressa, parece até que anda em câmara lenta.
Enfim na sapataria, escancara a janela e logo em seguida está ele outra vez acocado junto à porta. Olha a redondeza até onde a vista alcança e volta para dentro. Vez em quando ouve-se algumas batidas de martelo, ou então a velha máquina dar sinal de vida. Trabalha sapateiro, trabalha! Mas eis que, lá fora está ele outra vez. E desta vez, com certeza não vai ficar ali, daquele jeito. Vê o carro da polícia passando às pressas de sirene ligada. Pessoas também apressadas, dirigindo-se para a esquina. Alguém diz que houve um acidente. Dois jovens, na tentativa de assaltar o único banco do lugar, deram-se mal. O alarme foi acionado e a polícia em seu encalço. Na pressa de fugir (em carro roubado), acabaram colidindo no muro do colégio.
O sapateiro fecha a janela, e fecha a porta também. Desce a escada e, desta vez andando mais que depressa, atravessa um gramado mal cuidado e chega junto aos demais. Aglomeram-se curiosos, entre eles, obviamente, o sapateiro. Não chega muito perto. A falação no momento é intensa. O sapateiro, que é um pouco surdo, não entende o que o vizinho fala. Curioso para saber maiores detalhes, coloca a mão junto à orelha em forma de concha e tenta ouvir melhor. Os assaltantes, que só sofreram escoriações, são algemados e levados dali. Os curiosos, agora apenas alguns poucos ali continuam, entre eles, o sapateiro não podia faltar. Curioso do jeito que é, espera o carro rebocado dobrar a esquina para, apenas então, voltar para a sapataria. E desta vez, a volta é sem pressa.
Os dias passam. Passam os meses também. A sapataria está em completo abandono. O sapateiro adoeceu e, depois de várias idas e vindas de hospitais, está ele sendo cuidado em casa. Apesar de já bastante debilitado, pode-se vê-lo sentado numa cadeira preguiçosa, embaixo duma frondosa árvore de sombra. Um travesseiro e almofadas a contribuir para o seu bem sentar.
Passam-se mais alguns dias, até que numa certa manhã, o coração do sapateiro não resiste mais, emudece o coração do sapateiro. O martelo igualmente, suas batidas não mais serão ouvidas, emudece também a sua velha máquina. Dois meses depois, a sapataria foi vendida e em seguida demolida. No lugar, por enquanto apenas o vazio... A dois quarteirões dali, uma senhora grisalha caminha triste e pensativa. Nas mãos, um buquê de flores brancas.