QUANDO A VIDA ESCREVE...

Era um final de semana ensolarado e ele nos convidou para irmos até sua chácara localizada numa cidadezinha próxima a São Paulo.

Não era um passeio desses comuns, desses "relax" direcionados ao descanso semanal das grandes cidades, pelo contrário , seria uma viagem de "negócios" e eu nem de longe desconfiava que junto a ele, ali, encenaríamos uma figurativa crônica da vida.

Pelo caminho ele mais ou menos nos colocou a par dos seus compromissos imediatos e assim nos explicou que a chácara, adquirida ainda no começo da sua vida de casado, havia sido vendida.

Fazia exatos quinze anos que nem ele tampouco seus filhos adultos apareciam por lá, o caseiro então, já bem idoso, cansado e doente assumira até então toda a administração do imóvel desde que ele subitamente perdera sua esposa para a doença.

As "crianças já estavam crescidas", explicava ele, e o imóvel desocupado mais lhe dava prejuízos, com os altos custos de manutenção e já sem produção alguma, então, numa decisão bem solitária, resolvera se livrar daquilo que outrora lhe representava a felicidade dos velhos tempos em família.

Aos poucos fui entendendo que ali estávamos como amigos para a participação silenciosa mas solidária da sua difícil constatação de vida.

Então, o cenário que vi se comunicou arbitrariamente comigo, sob a sonoplastia dos pássaros que vieram nos recepcionar.

A piscina abandonada mostrava através da sua água bem turva suas paredes repletas de fungos, a quadra de tênis encoberta por mato alto, parte do tellhado da casa ruíra com a última chuva, a pintura da bela casa mais parecia algo caiado, desbotada pelo sol a pino dos anos a fio.

Ao fundo, se observava umas parcas folhagens de alface "verdinha", uma cultura de nítida forma de subsistência da terra e do caseiro solitário, que mais parecia a única sobrevivente heróica ao abandono sistemático do tudo.

De fato o tempo havia passado por ali sem o mínimo de dó dos seus personagens de outrora.

Foi sentindo assim que, de repente, ouvi um choro diferente, algo parecido com um "estridor laríngeo" vindo de dentro do alojamento do caseiro.

Então, já bem senil, doente, manco e cansado, um labrador veio ao nosso encontro com extrema dificuldade, lacrimejando na face a sua saudade vivida pelo tempo.

Com muita dificulldade pulou no colo do seu dono a lhe lamber a face com extrema e idêntica alegria de antes, como se nem um segundo houvesse passado entre eles.

Ali todos pudemos ouvir sua respiração ofegante que se confundia com a euforia incontida de reencontrar seu "amigo-dono", dentre sua patológica mas legítima dificuldade para respirar.

Senti nosso amigo soluçar em silêncio e soube que seu cão faleceu no dia seguinte ao nosso encontro.

Fiquei atônita com tanta mensagem da vida e a mim apenas me coube reescrevê-la.