Juazeiro do Norte - Lembro Como se Fosse Ontem
"A primeira vez que viajei para Juazeiro do Norte foi em 2003, aos 13 anos de idade. Não foi uma viagem programada, só fui por que meu avô faleceu e “herdei” a passagem dele. Não estava nem um pouco ansioso pra conhecer a cidade, estava mesmo era com vontade de, pela primeira vez, sair do meu estado; Piauí — sou natural de Teresina, capital. Lembro que uma semana antes, quando começaram as histórias sobre os locais e as pessoas do lugar para onde íamos, é que senti um pouco de curiosidade; pois não paravam de falar no quanto era bom viajar em pau-de-arara. A semana passou lentamente — a sensação que dá em pré-viagem —, e no dia 18 de outubro, às oito horas da manhã subi naquele caminhão com bancos de madeira; cheio de idosos, adolescentes e crianças. Não vi graça alguma em um pau-de-arara. Para não ser injusto, o que gostei mesmo foi daquele cheiro de lona queimada pelo sol (que, apesar da hora, já estava pelando)— que chamo de cheiro de circo — que vinha da cobertura. Antes de seguir viagem tivemos que parar em outros bairros para pegar mais pessoas. Quando todos os lugares já estavam ocupados — e minhas costas já ameaçavam doer — seguimos para a tal cidade.
Não demorou muito e comecei a entender porque era tão bom viajar em pau-de-arara; todos se conheciam, sorriam, conversavam; alguém começava uma cantoria tímida, chamada bendito, e os outros acompanhavam — principalmente as crianças —; um terço começava a ser rezado, alguns ajudavam dizendo os mistérios; uma piada era dita no meio do caminhão, e ia passando de fileira em fileira até que todos estivessem sorrindo da mesma coisa; um bebê começava a se esgoelar, palpites do motivo do choro não faltavam; bolos e frutas eram distribuídos; era uma família — durante uma semana inteira —, e eu, indo pela primeira vez, já me sentia parte dela. A estrada é longa, horas e horas de viagem. Quando passou toda a algazarra do começo, o aperto de mãos, as boas vindas, veio a monotonia; o mesmo cenário sempre; o mato seco — raramente uma árvore viva se destacava — , serras altíssimas, cidadelas isoladas do mundo, animais na pista, pessoas a pé, outras montadas em bicicletas, solitárias na estrada, caminhões de carga, ônibus e outros paus-de-arara; o único passatempo era contar as placas e decorar os nomes das cidades deixadas para trás — e encarar seus moradores, que olhavam estranhamente para nós; alguns até davam tchau. Também era nessa hora que toalhas e camisas serviam como uma barreira contra o sol; penduradas nas laterais do caminhão — amarradas na cobertura —, ou cobrindo rostos.
Durante o percurso passávamos por vários postos da policia rodoviária; e vinha aquela tensão do pau-de-arara ser parado e impedido de continuar. Mas não fomos parados. Os únicos lugares em que descíamos eram os postos de gasolina — e um deles virava restaurante ao ar livre; quando pratos, vasilhas, colheres e copos eram retirados de dentro de sacolas — e acostamentos. Após um intervalo de meia hora, para o almoço, retornávamos para a estrada; vinha o sono, e os menores conseguiam se enfiar de baixo dos bancos, e os mais velhos cochilavam sentados. Eu estava bem na beirada; arranjei um travesseiro, sentei em cima, e fiquei olhando para aquela linha branca, reta, no meio da estrada, que não chegava a lugar nenhum.
O restante da viagem foi desse jeito, até que paramos em um posto, já saindo do Piauí e chegando ao Ceará "— Quem tiver algo pra fazer, faça agora. Vamos parar agora só em Juazeiro!”, disse o motorista. Seis horas da tarde. Ainda faltava um bom pedaço para a tal cidade. Com a chegada da noite — e do frio —, éramos guiados por uma enorme lua brilhante; talvez essa seja a luminária que um dos benditos falava. O caminhão ainda parou em mais dois postos — para loucura do motorista; em um deles foi cogitada a janta; mas, por unanimidade, escolheram “— Jantar só na terra do padrinho”.
Horas depois, às nove horas da noite, quando alguém disse “Serra do Crato”, misteriosamente, todo mundo se ajeitou nos bancos. Mas ninguém ficou alegre, cantou, rezou; todos estavam com o medo estampado na cara. Não entendi nada — só depois me contaram como é perigoso descer ali. Mas nem me importei, continuei olhando para as poucas casas que apareciam durante a descida. Como eu estava no lado esquerdo, só vi um vulto amarelo; mas logo em seguida fui despertado pelos gritos e hipnotizado pelas luzes lá embaixo. A vista durou poucos segundos, mas os poucos segundos foram necessários para me deixar de boca aberta; as cidades de Juazeiro e Crato fundidas e reduzidas em milhares de luzes — grandes e pequenas; Todas as dificuldades da estrada foram recompensadas com aquela visão. Dava para ver que centenas de outros caminhões e ônibus entravam na cidade. Não existia mais medo de descer a ladeira — medo de cair no abismo. A alegria estava presente naquele espaço. Mais emocionante que isso foi ver a estátua lá no Horto; um ponto branco, iluminado. Se eu, que vi pela primeira vez aquilo, fiquei encantado com o espetáculo de luzes, imagina Padre Cícero, no ponto mais alto da cidade, olhando para aquilo todos os dias? Admirando o seu maior milagre; Juazeiro do Norte? Deve se encher de orgulho. Essa foi a primeira visão que tive de Juazeiro; e sempre me lembro, do nada — mesmo agora, quase dez anos depois —, como se fosse ontem. Ao entrar na cidade fomos recebidos com uma barulheira; buzinas e gritos. A quantidade de crianças era assustadora — romeirinhos, encarregados de continuar com a tradição. Se existir algo mais bonito que essa recepção, nem quero experimentar. Não sei se meu coração aguenta."