Crônica de uma sala de aula - coleção completa
Crônica de uma sala de aula...
Leitor: coautor do texto - Lêdo Ivo
I
Cenário: uma das salas de aula localizadas no quarto andar do prédio do Campus I do CEFET, em Belo Horizonte.
Enredo: correção da primeira prova da professora Suelen Érica, disciplina Estudos de Linguagem. As questões da avaliação versavam sobre fonética articulatória consonantal.
Personagens: todas são protagonistas, com possibilidades de se tornarem heróis ou anti-heróis no correr das aulas e de suas vidas. Cada personagem traz em si traços de um e outro caráter, o que não altera em nada as regras do jogo ou da existência. Elas são constituídas por aluno (a)s e professore (a)s do atual segundo período do curso de Letras.
Época: quanto à data dos fatos aqui narrados, acredito que o dia da semana tenha sido inicialmente a sexta-feira, 25 de janeiro de 2013.
Narrador: ora, o narrador da história sou eu mesmo! E, aliás, um narrador bem pouco onisciente e onipresente.
*
O fato é que em um dado momento da correção da prova, propôs-se como exemplo de uma questão a transcrição dos fones da palavra advogado. Para isso a turma declarou a utilização da pronúncia “adivogadu”, com a inclusão de uma letra “I” logo depois da letra “D”.
Em seguida faríamos a transcrição.
De repente alguém levanta outra hipótese: havia a possibilidade de certos falantes se utilizarem igualmente da expressão “adevogadu”, com a inclusão de uma letra “E” no lugar da tal letra “I” do exemplo anterior.
Sim. Era certo que muitas pessoas falavam “adevogado”. E então cada um se lembrou que conhecia ou conheceu alguém que se expressava exatamente daquela maneira.
Isso fora o bastante para que o Vanderci - com o rosto explodindo de vermelho! - se manifestasse em alto e bom som:
- Olha gente: se um cara desses viesse falar “adevogado” pra mim, eu não contrataria ele era de jeito nenhum! Nem a porrete!
Nesse momento pipocou um bocado de risada por toda a sala. Mas a professora não perdeu tempo e contra atacou imediatamente:
- Mas isso é preconceito linguístico, Vanderci!
- Não é não, professora – afirmou o cabra ainda mais vermelhinho que antes. Pode até ser preconceito profissional, mas linguístico não é não!
- É sim – insistiu a Suelen. Na concepção do Marcos Bagno isso tem toda a pinta de preconceito linguístico! Além de tudo, a fala e a língua estão demonstrando claramente que esse é um caso de...
Nesse ponto o colega Júlio tomou a palavra dos lábios e da mente da nossa professora e esclareceu a todos que aquilo de fato não era mais que...
- ...regionalismo, professora, puro regionalismo!
Tivemos durante alguns segundos mais uma série de manifestações acaloradas que se misturaram a muitas risadas.
E o Vanderci - que ainda não se achava completamente convencido de ter cometido aquela espécie de preconceito - tentou se justificar:
- Tá bem, gente. Talvez seja mesmo um caso de preconceito linguístico. Pode até ser! Mas – cá pra nós! – esse foi o meu primeiro preconceito, viu! Foi o primeiro que eu cometi em toda a minha vida. Eu juro que foi o primeiro!
Nossa crônica continua no próximo capítulo...
II
Eis que o dia seguinte era nada mais e nada menos do que um daqueles fatídicos sábados letivos. Sim: era sábado e – tal qual numa deliciosa passagem de Machado de Assis - caia uma chuvinha fina e persistente.
O horário inicial pertencia à disciplina Oficina de Texto Literário e o outro à Sociolinguística da professora Juliana. Coincidência ou não, o tema da segunda aula fora exatamente aquele da discussão constante da crônica anterior. Realizaríamos um seminário sobre o livro “Preconceito Linguístico”, de Marcos Bagno.
Acabada a aula da Ana Virgínia, deu-se início às discussões. A ideia era ir abordando mito por mito, na sequência exposta na própria obra do educador: mito número um, mito número dois e assim por diante.
E enquanto a discussão e o debate prosseguiam, nós também nos aquecíamos um pouco naquela manhã fria e nublada. Em dado momento - para proceder ao encerramento do mito de número sete e passarmos à análise do último mito - a Gledes leu-nos um trecho do livro que se encontra na página oitenta e sete:
“Ora, para aprender história, geografia, física, química etc., é preciso ter um domínio poderoso da leitura e da escrita (e das habilidades matemáticas), porque todos esses conteúdos são transmitidos por meio da linguagem”.
Finalmente, para concluir o seu raciocínio com chave de ouro, ela acrescentou ao texto de Bagno algumas palavras de sua própria lavra e autoria:
- Ora gente, com isso decerto que se acabou com tudo! – afirmou categoricamente esfregando as mãos e lambendo os beiços.
Naquele momento, como ocorrido na famosa passagem bíblica na qual o Espírito de Deus teria pairado sobre as águas, pairou em nossa sala de aula um silêncio assombroso. O único som que se ouvia no nosso caso provinha do giro lento e uniforme das hélices dos ventiladores pendentes do teto da sala.
Mas de voz humana não se ouvia nem um pio. Estávamos todos muito concentrados e atentos na sensação de que parecia faltar alguma coisa. Teria a Gledes terminado o seu pensamento ou ainda restava algo a dizer?
Ninguém se arriscava a dar prosseguimento ao debate. E isso se manteve assim até que a Renata Estanislau se ergueu como uma heroína disposta a nos tirar daquele terrível impasse.
E ela o fez simplesmente dizendo:
- É, gente: se a Gledes afirmou com tanta certeza que o texto do Bagno deslindou todas as nossas dúvidas, então ele acabou com tudo mesmo! Podemos passar para o próximo mito.
Em seguida estourou uma risada geral por toda a sala.
O capítulo III nascerá amanhã e trará como protagonista o mestre do skate, Diego Drumond.
Então até amanhã para todos e todas.
III
Em meio às conversas, análises e debates que iam crescendo e se multiplicando em nossos estudos sobre os preconceitos linguísticos, a professora Juliana resolveu correr o seu diário de classe entre os alunos.
E solicitou que cada um colocasse uma rubrica junto ao seu respectivo nome. Posteriormente ela preencheria os quadrinhos relativos à presença.
Muitos colegas, no entanto, se distraíram em meio às argumentações das discussões: sem terem entendido direito o que a Juliana dissera, alguns não colocaram a tal rubrica no espaço indicado. Outros ainda acharam que era apenas para dar uma inocente “olhadinha” no diário.
Consequência: sem saber o que era para ser feito, o Diego manteve o diário junto a si e foi registrando nele a presença de todos os alunos. Desenhara com todo o cuidado uma infinidade de pontinhos azuis que se estendiam de alto a baixo no espaço referente à aula ministrada naquele dia.
E aquele dia – minha gente! – o tal dia 26 de janeiro continuava frio e chuvoso e fatídico como só um verdadeiro sábado letivo ousaria ser.
Mas era possível que o dia seguinte (e percebam todos que “os dias seguintes” sempre podem guardar qualquer coisa de especial e venturoso e mágico para cada um de nós!) nos reservasse a esperança de um domingo tão completamente perfeito e azul quanto aqueles pontinhos coloridos que o Diego dispusera com capricho no diário de classe.
Convido os colegas a registrarem no papel ou na tela do computador as crônicas da nossa sala. Cabe lembrar que o tempo se encarrega de apagar indiscriminadamente tanto as boas ações quanto as ruins e que muito do sentido e do vivido se perdem muitas vezes como lágrimas na chuva.
IV
Não queria comentar não, mas ando desconfiado que o Vanderci gosta mesmo é de participar das nossas histórias e aventuras. Vira e mexe, ele surge tecendo suas artimanhas no objetivo de aparecer como protagonista na tela dessas crônicas.
Vou lhes contar um caso acontecido na aula da última sexta feira - primeiro dia do mês de fevereiro - e tentar provar a minha tese.
Bem, dava para perceber naquela noite certo ar de cansaço no rosto da Suelen. Aliás, todo mundo parecia estar muito cansado. A semana fora longa e recheada com a leitura de muitos textos. Apresentáramos trabalhos sobre os poetas-músicos (Leminski, Alice Ruiz, Waly Salomão, Drummond, Bandeira etc.) em Teoria da Literatura e seminários diversos nas disciplinas Estudos Introdutórios de Edição e Sociolinguística.
Porém o que mais denunciava o cansaço da nossa mestra (a tal futura doutora em Linguística!) era o seu tom de voz. O tom de voz cansado fora se acentuando ainda mais no decorrer dessa última aula do dia e da semana na medida em que cada um de nós disparava uma pergunta (nem sempre tão) novinha em folha ou solicitava que ela transcrevesse foneticamente mais uma palavra.
Num dado momento, porém, em que o grau de tolerância da professora parecera ter chegado ao limite, ela nos lembrou que estava dando aulas desde as treze horas e que o pior (no nosso caso) já havia passado...
- É isso mesmo turma: o pior já passou (ela se referia ao estudo da fonética consonantal). Temos que nos dedicar agora às vogais. Eu não me importo de responder mil e uma perguntas nem transcrever no quadro a mesma quantidade de palavras. Mas é importante que todo mundo preste atenção nas respostas e nos exemplos que estão sendo apresentados. Estou praticamente repetindo a mesma coisa umas dez vezes. Se não focarem na aula, não conseguiremos avançar na matéria!
Foi então que o Vanderci ergueu o dedo indicador e - meio sem jeito, meio sem vergonha! - solicitou que a professora transcrevesse mais uma palavra para ele, só mais uma palavrinha:
- Ô Suelen, transcreve só mais essa pra mim!
Se eu fosse o narrador onisciente e onipresente dos textos da Teoria da Literatura, talvez tivesse sido capaz de definir o que a professora Suelen sentira naquele momento. Como não sou, tentarei apenas descrever aquilo que pude ver com esses olhos que a terra há de comer.
E o que os meus olhos viram foi que os da professora Suelen se fecharam durante um instante. E pareceram penetrar numa região sombria ou indefinida. E o que eles pareciam dizer era algo que provavelmente nascia entre o desejo intenso de chorar e uma igualmente intensa vontade de... trucidar alguém. Talvez um ou dois alunos apenas. Ou apenas um ou dois alunos por vez, até que a turma inteira sucumbisse a seus pés.
Vai saber!
No momento seguinte, porém, a Suelen se apaziguara inexplicavelmente. E ela e os olhos dela nos observaram atentos, até conseguirem se afastar daquele estranho mundo de sombras em que se viram perdidos durante uns poucos segundos de indecisão. Eu diria, finalmente, que ela regressara renovada daquela experiência e cheia da velha e boa energia que as professoras sempre carregam consigo.
Então - munida de novo de toda a paciência do mundo - ela se dirigiu ao nosso colega e perguntou com voz pacífica e calma:
- Mas qual palavra, Vanderci, qual palavra?
Ao que o Vanderci retrucou, vermelhinho da silva:
- “Fui”.
E em seguida ele se foi mesmo.
V
Vamos registrar nesse capítulo as frases mais importantes expressas por nossos mestres e colegas no decorrer desse difícil semestre letivo e que marcaram definitivamente o segundo período do curso.
As tais frases – verdadeiras pérolas da linguística, no dizer de alguns - prezam sempre por apresentar um valioso aspecto cultural, por expressarem um linguajar diferenciado e bem característico de cada proseador em sua arte de comunicar-se e por colaborar direta e indiretamente na aprendizagem dos alunos.
Colegas e professores: sintam-se todos homenageados nessas breves crônicas, mesmo aqueles e aquelas que não tiveram registradas aqui as suas palavras ou ações. Faltou talvez ao compilador e organizador dessas frases um pouco mais de atenção e sutileza na guarda desses tesouros da linguística prosaica e do prosaico saber universitário.
Acrescento ainda que acabei desconsiderando na época o contexto da fala de algumas dessas personalidades. Isso talvez viesse de fato a fazer enorme diferença em relação ao sabor e ao paladar dessas pérolas.
Curiosas frases expressas em sala de aula pelo professor Heitor:
- Isso aqui é igual jogo de bicho, vale o que está escrito!
- De pequenino é que se torce o pepino!
- Em condições normais de temperatura e pressão é uma coisa, o que não é o caso neste semestre!
- Ser professor é uma doença hereditária. Meu pai foi professor, minha tia foi professora. Eu também sou professor...
- A prova do pudim consiste em comê-lo.
- Num jogo de futebol, a bola é que tem que rolar. A gente não! (explicando sobre o seu método de ensino e aprendizagem).
Ana Virgínia entregando pra nós o resultado das resenhas num sábado letivo:
- Thamires continua doente (dengue)... O Paulo ainda tá dormindo... A Helena de “Tróia” também tá dormindo... Ufa, tá difícil!
Eu, perguntando para a Gledes (e querendo incomodá-la):
- Como é mesmo o seu nome: Gleice, Gleids, Cleide...?
- Não, meu nome é Gledes. Mas pode me chamar de Biela mesmo!
Roniere Menezes:
- Isso é interessante... (frase repetida umas trezentas e trinta e duas vezes no decorrer do semestre).
Essa pérola foi produzida em sala de aula por alguém que eu não me lembro quem:
- A quarta premissa da fonêmica é aquela que afirma que às sextas feiras a professora Suelen tende a aumentar o timbre da voz, para desespero da Ana Nápoles!
Só pra gente se lembrar. As três premissas da fonêmica são: os sons tendem a ser modificados pelo ambiente em que se encontram; os sons são simétricos; e os sons tendem a flutuar.
Lembram-se?
Diego Drumond refletindo sobre o trabalho humano (poucos dias após ter efetivamente começado a trabalhar!):
- O primeiro emprego a gente nunca esquece!
Sabemos disso, prezado Dieguito. Sabemos também que a vida às vezes sabe ser dura. Ô se sabe...!
Ana Virgínia:
- Meu pai gosta de uns goró!
Resposta imediata da Gledes (Biela):
- Opa, esse é dos meus...
Seminário do James sobre representação, imaginário etc.
O Vanderci tira da cartola algum tema relacionado aos muçulmanos, algo que tinha a ver com o fato de que aos homens dessa religião ficava reservada a graça (e o prazer, aliás!) de obterem setenta virgens após cometerem algum ato de desatino que viesse a lhes tirar a vida.
Então o Zé Henrique - olhar vago, distante e pensativo como só ele tem! - meio que reflete para si mesmo e pergunta, inconscientemente, pros colegas:
- E se fosse uma mulher muçulmana terrorista? Ela também teria direito a setenta homens virgens? Sim. Acho que teria...
A Juliana comentava algo a respeito de verbos pouco usados na atualidade.
Aí o Zé Henrique (com muita procedência, aliás) se lembrou desse:
- Frigir dos ovos, professora. Frigir dos ovos é um bom exemplo!
Segue uma série de pérolas ocorridas durante as aulas da futura doutora Suelen Érica.
A Suelen usando a Isabela como exemplo em sala de aula:
- A Isabela com certeza nasaliza “camada”. Para ela deve ser kã – ma – da. Mas então, pessoal, quem não nasaliza camada fala camada mesmo!
É que em todas as aulas e exemplos a Isabela sempre dava um jeito de contradizer e polemizar com a professora, fazendo uso de algum tipo de pronúncia diferenciada.
Acho que isso se devia em verdade ao excesso de amor que a aluna com certeza nutria pela mestra.
Outra da Suelen. Quer dizer: essa é minha mesmo:
- As palavras que nasalizam vão receber a “marca”. Tipo: tã-to.
Ela estava se referido à marca da nasalização (~). Mas como eu estava “avoando” bem longe naquele momento, olhei pro Paulo e inquiri muito seriamente:
- Mas que droga de marca é essa, Paulo? Será que é a tal marca do Diabo? A marca do anticristo de que tanto falam por aí?
O Paulo não disse nada. Apenas olhou pra mim e deu uma gargalhada gostosa.
Mais uma da Suelen. Ela encheu o peito e soltou essa:
- Mas ela (se referindo à tal da Isabela de novo) com certeza nasaliza o cu de cúmulo também.
Agora fora a sala inteira que se pusera a rir e gargalhar. Só não sei se por causa da Isabela ou do cu do cúmulo.
A penúltima da Suelen. E essa traz o Júlio na alça da mira.
Depois que se usou a palavra “vinho” em um exemplo, o Júlio fez a seguinte declaração:
- Ô Suelen: aquele símbolo fonético que representa o NH me lembra o lula molusco, o amigo do Bob Esponja. O quê que ocês acham da gente batizar ele de lula molusco?
A última pérola. Essa aconteceu com a própria Suelen.
A Suelen tentava explicar os alofones (as tais diferentes realizações de um mesmo fonema) para a turma:
- “R” retroflexo, por exemplo, é o “R” caipira...
- Ahm? (me lembrei imediatamente de uma aula com a professora Rosane em que apresentáramos um trabalho sobre os dialetos brasileiros e na qual havia ouvido falar pela primeira vez nesse tal de “preconceito linguístico”.
A Suelen percebeu rapidinho a sua “bola fora”. Mas não deixou cair a peteca não - se agarrou nas rédeas do seu cavalo baio - e prosseguiu airosa:
- Não, não é preconceito não, turma...!
Eu e o Paulo olhamos interrogativos na direção dela.
E ela repetiu:
- Não é preconceito não!
Aí ela parou, refletiu um instante, pensou um bocadinho e concluiu:
- Tá bom, gente: vamos então chamá-lo de R “interiorano”!
Em seguida deu prosseguimento à aula:
- Mas isso tudo nos mostra o quê, turma? Isso nos mostra a alofonia, isso nos mostra que os sons tendem a “flutuar”!
O que ela não sabia é que éramos nós que às vezes flutuávamos em suas aulas e em todos aqueles sons!
Quem se lembrar de mais alguma pérola passa pra gente, uai! Na próxima edição a gente acrescenta.
E boas férias pra todos!