Caju 1950s


Olhar do menino, mitologias e visões do menino, ainda não precisa distinguir entre almas vivas e almas penadas, mal pode saber o que são almas. E hesitações do adulto, que o recorda, mais incauto, ludibriado pelo século e o auto-engano, sem entender muito bem o que está acontecendo, sem adivinhar, tão distante agora no tempo, quem o teria reconhecido da época em que admirava, ou quase nada, atrás das cortinas de uma janela-carmona que dava para um pedaço de cais e cemitério. Não podia ter deixado de ver muita coisa dali pela voz em-seguida dos mais velhos ou a imbecilidade triunfante do fait-divers: um ladrão com um rabo-quente no ombro saindo da casa vizinha, o padeiro da esquina esfaqueado por um marido ciumento, os bondes cheios de pernas do poeta, buicões pretos tremendos, marujos, bêbados, coveiros, trabalhadores indo ou voltando em horas certas e incertas, e o crepúsculo proibido para ele, quando era arrancado do lugar de espreita, do convívio com as putas mais lindas da cidade, que moravam ali.

Irene depara comigo em plena feira livre de Marechal Hermes, olha para os meus cabelos de palha seca e quer saber de histórias sem conta de lá. Uma outra Irene, dona Irene, como pôde envelhecer se fazia trabalho para os deuses, vestida de ouro e azul, sob o olhar golêmico dos desamparados — uma fisgada no peito, uma saudade repentina, afogada neste rosto enrugado com um sorriso de criança, uma coisa velhíssima do velho bairro, quando a infância, a inconsciência de rumos, e os fantasmas... Caixa, arca-pandora com seus frutos machucados, recolhidos de barraca em barraca na hora universal da xepa. Outra Irene, não há dúvida. Marcada, porém, com o nome dos nomes, que só lhe pertencia devido à insensatez dos espelhos. Irene. Sem homens, sem filhos, sem território humano. Irene. Mãe de todas as coisas, útero e sepultura de todas as coisas.

Lá me ocorria a invocação, lá se deitavam meus olhos, no terceiro e menos lacunoso volume de seu antigo livro de orações clementinas, em fonte garras-do-diabo, como era habitual entre os filósofos do tornozelo com seus cães-de-andarilho, mãe desses pobres mortais em extinção, mãe dos outros, mãe-dos-outros, repondo diante de mim o cenário: os últimos barcos, as novas águas de óleo e cocô, o sonhado farol canabinóide, o cais deserto com suas portas trancadas e tapumes de estaleiros, depois de tanto enredo e tanto fausto clandestino.

E havia os maldosos, que chamavam de Alfândega, sob o macio engodo das promessas ou o pavor à represália, ao arrogante pseudo-Fonseca, homem de novos papiros, homem-sombra — od ombra od omo certo —, que durante nove anos manteve em cárcere privado a dançarina holandesa, na confusa era do falso Herengracht e dos bondes com cheiro de maresia e sabonete, flores e parafina, declarando-a boçal, na mesma voz jesuítica dos sonhos de ultramar e conversão. No entanto formosa, uma Moça formosa?, demasiado formosa para ficar batendo pernas durante o dia neste bairro asqueroso, segundo ele, olhando ou não para mim, quando à janela. Gritava possesso para pinguços e estivadores, policiais de mão molhada e vereadores bundões: Irene não estava sempre deslumbrante, à noite, em suas apresentações? Não continuava recebendo em sua alcova os fregueses que pagavam bem? Não se sentava à mesa dos mais fodidos para um drinque com direito a decote e sorriso? Não vivia se derretendo de promessas sob os lampiões vermelhos? Não cuidava toda manhã do seu pardal-dos-telhados, regalo de gregos e troianos, holandeses e lusitanos, operários e guarda-livros?

Itinerário, tão longe agora, como a boca de um poço fora da cidade: cemitério, asilos, escola pública aos pedaços, campo de futebol, vendedores de mármore e granito, e grandes terrenos baldios, sim, Irene, sim, dona Irene, não estão mais lá os terrenos baldios, tudo construído agora, uma festa, uma grande festa de barracos.

E fiz uma feira para ela, com a dignidade dos alfômegas, a comiseração confortável dos humanistas, um cidadão desamparado...


[5.2.2006]