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- Foto de uma locomotiva, popularmente chamada de 'maria fumaça'.



UM DOCUMENTÁRIO DE FAZER PENA

 
                                            “É o trem das sete horas, é o último do sertão...”
                                                                          Raul Seixas
 
 
      Como sempre dou uma olhada, aos sábados, para não fugir à norma, ontem, à véspera deste Dia de Tiradentes, fui ver a sessão do CINE NORDESTE. Eis uma boa coisa que o Canal 22 (TV Diário) tem para nos mostrar, aqui, em Fortaleza, invariavelmente ali pela casa das 22h.
 
      Há tempos que essa tevê, pertencente ao Grupo Édson Queirós e irmanada à TV Verdes Mares, começou explorando os filmes que abordam temas ou motivos nordestinos e, agora, ao que parece esgotado o acervo, ela vem enveredando pelo caminho de grandes documentários.
 
      Muitos livros de grandes escritores brasileiros, em especial os modernistas, que tratam exclusivamente da problemática da nossa região, já foram apresentados, sempre aos sábados. Além de Deus e o diabo na terra do sol, Vidas secas, O Quinze, Menino de engenho, Seara Vermelha, e mais uma infinidade de romances famosos que viraram filmes.
 
      Foi comovente, sob todos os aspectos, o documentário a que assisti. O título era “O último apito”. Trata da ferrovia, no Ceará, miseravelmente assassinada por maus governantes, inimigos do povo. Em princípio, originada lá no Império, a nossa estrada de ferro assume foros de maioridade com a Rede de Viação Cearense (RVC), que fundiu a Estrada de Ferro de Baturité e a Estrada de Ferro de Sobral, na tentativa de uma estadualização do importante meio de transportes.
 
      Já aos emboléus, como empresa estatal e ainda sob a égide da ditadura, depois a RVC passou a chamar-se Rede Ferroviária Federal Sociedade Anônima (REFFSA) e, finalmente, sem mais a interiorização, Companhia Brasileira de Transportes Urbanos (CBTU).  Até que seriam, lamentavelmente, de uma vez, sepultados os trens, sem dúvida nenhuma o mais importante meio de transportes que já tivemos neste País.
 
      Quando aqui existiu, trem era transporte bom e barato, com 1ª e 2ª classes. Trazia dos confins o milho, o arroz, o feijão, a farinha, o algodão, a lenha, animais para o abate, enfim, tudo o que fosse para vir do interior vinha no lombo do trem. E, para completar, ainda servia de cavalo bom para o homem do campo, rico ou pobre que ele fosse.
 
      Toda a exibição do longo e excelente documentário “O último apito” foi marcada por momentos de muita tristeza, muito chororô e emoção. Aliás, a tristeza e a saudade foram o ponto alto, a tônica, as palavras-chave da película. Também a mim aquilo me calhou fundo, doeu e me deixou jururu à beça. 
 
      Com saudade da companhia extinta que, ao longo de suas vidas, fora o seu ganha-pão e o de suas famílias, senhores idosos, cabelos alvos como o algodão e a renda de rugas no rosto, choravam como crianças desmamadas, ao prestarem relatos cheios de extrema comoção. Foram inúmeros os que choram copiosamente, alegando tristeza e saudade.
 
      Não pensem que exagero. E eram homens e mulheres. Uma professora, como os demais depoentes aposentada, ela da associação dos ex-funcionários, sentenciou uma frase bombástica e expressiva: “Acabaram com a REFFSA, mas não acabaram com os ferroviários”.
 
      Ouvindo isso, igualmente macambúzio, lembrei-me do Ferroviário Atlético Clube, time que, por esses tempos, anda aos pandarecos, em resultados de campo. Que Seu Valdemar Caracas*, lá das Mercês de Cima, rogue pelo seu clube querido. Por mim, eu não punisse pelo alvinegro, o Vovô, certamente hoje estaria a torcer pelo Ferrim, o esquadrão do finada Estrada de Ferro.
 
      Impressionante como são longevos os ferroviários. Alguns, vistos no filme, em bom estado físico, apenas com bastas cãs, ou alvor total no cabelo, mas com rostos ainda pouco enrugados. Colhi muitas das funções, entre os depoentes, e passo a citá-las.
 
      Engenheiros, agentes de estação (bem fardados e de gravata, em tempos idos) e bom número de maquinistas. Estes eram a maioria. Continuei anotando os cargos que ocupavam: supervisores, choferes de trole e motor, guarda-chaves, foguistas, supervisores de manutenção, artífices de manutenção, eletricistas, feitores de obra, rondas (encarregados de observar e conservar as linhas férreas), etc.
 
      No filme-reportagem, essas personagens em carne e osso falaram de coisas boas e de más, porém por muitos de nós sabidas e esquecidas. Eles lembraram a Estação João Felipe, a Central, no cerne de Fortaleza, as locomotivas, a “maria-fumaça”, o trem de luxo para irmos até Recife, o Sonho Azul. Até das visagens que viam, nas ermas tiradas de linhas férreas, meio aos altos sertões, eles falaram. E mais falaram das apetitosas bananas-secas de Pacatuba, das uvas e laranjas baratas da estação de Baturité e do mais fatídico acidente ferroviário, em Piquet Carneiro, quando lá morreram centenas de irmãos cearenses.
 
      Contudo, homens e mulheres que ainda restam da velha e saudosa Estrada de Ferro, no Ceará, a mesma oriunda lá de Dom Pedro II, na fita o que mais fizeram foi lamuriar-se e verter água dos olhos. Mais parecia um “muro das lamentações”. Uma coisa de fazer pena e dó. E pensam que aumento? Não, verdade absoluta. Tudo saudade verdadeiramente sentida, que nada ali era ensaiado nem fingido.
 
      Patético e doído, entre tantos que vi e ouvi, foi o relato de um maquinista, pincelando o que vira de comoção e chororô generalizados, quando da última viagem do trem entre os municípios de Sobral e Comocim. Em sua atual descrição o pobre velho não se conteve e chorou a cântaros. Mas não contei outros que também choraram.
 
      Maus governantes, perversos e sedentos por lucros fáceis e a rodo, tentando justificar que os trens davam prejuízo, que não eram rentáveis, criminosamente acabaram com um bem social, econômico e coletivo de valor inestimável. Não falo desse tal metrô, que ora se inicia, em Fortaleza, às duras e suadas penas, com o atraso de pelo menos três décadas, que metrô não é trem. Todos os países do dito Primeiro Mundo têm seus trens, à farta, e a correrem em bom funcionamento. Trens-bala, para o governo de todos.
 
      Após uma novela que se esticava há décadas, por mercê e graças do Divino Espírito Santo, mas tão somente por causa da tal Copa de futebol que se avizinha, foi que tivemos a inauguração (ainda precária e aos pedaços) desse tal metrô de faz de conta. Mas repito: metrô não substitui o trem, que ia até o Crato, lá no extremo da linha centro-sul, e até Crateús, na linha norte. E ainda nos proporcionava passeios à Veneza Brasileira.
 
Fort., 21/04/2013.
 
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(*) Valdemar Cararas, nascido em Pocoti, CE. Funcionário de destaque da RVC e o último sobrevivente, até bem pouco, que fundou o time do Ferroviário. Ele faleceu aos 104 anos.
Gomes da Silveira
Enviado por Gomes da Silveira em 21/04/2013
Reeditado em 22/04/2013
Código do texto: T4251982
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