NOMES DE INFANCIA
Por Carlos Sena


 
Infância sem nomes característicos, jocosos e marcantes é como café sem açúcar, como praia sem sol, como pão sem manteiga. Nesse quesito minha infância foi cheia de nomes e, naturalmente de personagens. Um deles é Zé Bebinho – eu adorava ter medo dele. Diziam “lá vem o bebo”, mas quando ele passava, coitado, era do bem. Lembro-me de Gonga. Ah, Gonga – nossa “quenguinha” (até hoje na ativa) preferida das aventuras na matinha. A “matinha” era onde hoje está o parque da cidade feito pelo prefeito Daniel. Pois é. A “matinha” era o refúgio nosso – mais precisamente a “pensão calango”, pois Bom Conselho não tinha motel como hoje. Lá também se armava circo, pois eu lembro que vi o Circo Garcia várias vezes, mas vi também vários mambembes. Por falar neles lembro que um dia fomos acompanhar o palhaço. Toda vez que ele dizia “o palhaço morreu” a gente respondia: o couro é meu! Certo dia, Fernando de Nazaré inverteu: ao invés de “o palhaço morreu e o couro é meu” ele disse o “cu é meu”. O palhaço se levantou e correu pra nos pegar, mas a gente correu primeiro. O problema é que ele não nos marcou com cinza de carvão para a gente à noite entrar à no circo. Numa dessas "gritadas de circo", Aurora de Aluizio soube que Luzinho estava lá, gritando palhaço. A gente soube e ela deu com os "burros n'água". Mas, em casa, soubemos que ele levou uma bela duma surra. Eu levei várias, mas tô vivo e feliz.
Outro personagem inesquecível era o professor Aloísio Barbosa, lá do  Ginásio São Geraldo. Lembro-me que um dia, na aula das sete da manhã, ele não deixou Paulo Índio entrar com meias brancas (deviam ser pretas), pois ele olhava cada aluno, um a um, pra ver se as meias estavam de acordo. Paulo Índio não se aperreou: foi lá fora e sujou as meias de lama e acabou entrando pra fazer a prova. Bom sujeito aquele Barbosa. Bom também era Seu Sebastião – ele vendia quebra-queixo e doce japonês na porta do ginásio. (Se fosse hoje ele tinha que deixar de vender, pois certamente não servia pra passar drogas no seu carrinho de doces.)
No rol dos nomes, personagens impares: Lula Garrancho, Gabira (depois de velho virou padre), Zé Correntão, Juarez da sorveteria, Seu Belon. Ah, seu Belon, como eu gostava de comprar tamancos em sua banca, pois no inverno, com a lama comendo no centro, só os tamancos de Seu Belon resolviam. Ele ficava numa barraquinha na esquina da praça principal, bem pertinho da loja de Seu Zé Correntão. Nesse rol, não poderia deixar de lembrar “Seu Colarinho" – esse era o meu terror: eu doido pra deixar o cabelo grande, papai nos levava para ele cortar à Jaquidemes (é esse o nome?). Ele ficava ali, no inicio da Rua do Caborges, onde a família Boanerges imperava no melhor sentido da palavra.
Zé Bia? Ah, falar em Zé, depois que Alexandre publicou um livro sobre suas peripécias fica sem graça. Talvez a gente possa compará-lo ao Seu Lunga – personagem que nem sei se existe mesmo, mas dizem que sim e é do Ceará. Das "tiradas" de Zé Bias que eu me lembro, umazinha: eu estava lá, no seu “atelier” e chegou uma senhora metida a rica, mas lascada, coitada. Daquelas que come sardinha e arrota caviar. Perguntou se seu sapato tava  pronto e quanto era. Zé disse o valor e ela achou caro e ainda disse que depois ia pagar. Quando a mulher saiu, ele disse: “toda metida a rica por fora, vai ver que por dentro a calcinha está suja e furada”... Eu só pude rir! Outra: certo dia, sol a pino, Zé Bias vai ao futebol com o guarda-cuvas debaixo do braço. Todos galhofavam dele. Certa hora o tempo muda e começa a chover. Todos correram pra debaixo do guarda-chuvas, mas, ele não se fez rogado: fechou o guarda-chuvas e todos ficaram molhados. Ele perdia o amigo, mas não a piada.
Nesse rol de nomes, como esquecer de Seu João Bolacha, o vigia do sítio das freiras? De Seu Liro – o do açude! Quem dissesse que sabia nadar, tinha que ter atravessado o açude de Seu Liro. Mané Léu! Pense num caba desengonçado, alto que só vara de tirar coco, mas gente trabalhadora e tranquila. Dona Caboquinha, como gostava de gatos! Em sua casa tinha pra mais de Cincoenta gatos, sem tirar nem por. Era tia do meu grande e querido amigo Adnísio Padilha, marido de Lourdes. Era assim, na minha terra. As pessoas sozinhas não existiam. Eu era Carlinho de Pretinha; Marcos e Chico eram de Adnísio, Mano de Zulmira e assim todos. Pretinha era de Zé Barros.
Dizem que toda cidade interiorana tem um louco, um bêbado e uma puta famosa. Tem também o padre, o juiz e o delegado – personagens da cena viva da cidade. No meu tempo de infância, lembro-me de Padre Alfredo e de Carício. Este – meio metido a “deus” até festa mandava acabar para não atrapalhar quermesse, sua coleta. Gostava mesmo de Frei Leão. De Dimas, um pouco. Como padre era presunçoso demais. Certo dia ele disse pra todo mundo ouvir: “nesse ginásio só tem eu, Zé Marleno e Frei Dias”... Poupe-me de sua soberba frei! Mas é gente  boa e bom artista plástico, talvez melhor do que frade. O doido da cidade, no mei tempo: era uma doida: a Cololô! Certo dia Cololô desceu a ladeira do mercado em direção ao Corredor. Só de calcinha, coitada. Achando pouco baixou a calcinha e colocou dentro um peixe que a gente chamava de “cará” e saiu dentro da sua normalidade rua afora. Havia até um refrão que não sei se foi por conta dela: “Cololô quebrou a perna e eu também quebrei a minha. Cololô colou com cola e eu com merda de galinha”...
Irmã Celina? Como se esquecer dela? Baixinha, ficava na portaria do colégio no papel de São Pedro. A gente subia as costas dos amigos e fixava uma fita durex na campainha, só pra vê-la sair procurando atônita por quem não estava mais ali.
Seu Tobias! Esse era ótimo. Ele teve um AVC e ficou meio ruim das ideias. Na porta da sua casa ficava gritando, inclusive palavrões. Gostava de falar do Papa. Que papa? Papa mé, dizia. Mas era uma figura permanente no trajeto da escola na Rua Siqueira Campos. Se não me falha a memória, Seu Tobias era tio de Tomires, Cecedina, Nitocles e Maria. Pense numa trilogia de nomes esquisitos. Tomires era a mais sapeca por conta do seu cachorro Twiste. Ela se arretava quando a gente chamava Twiste para dar chocolate sem ter chocolate nenhum pra dar praquele cachorro chato. As más línguas falavam mal dessa relação, mas era mesmo a língua ferina do povo, mas que falavam falavam.
Zé Basilio! Esse ainda hoje tá lá, no batente da igreja. Eu gostava tanto dele que botei o seu nome no meu gato. Disse a ele isso e ele até me agradeceu. Rui. Esse era o “ó do borogodó”. Rui de Seu Dé Silverstre. Quando tomava uma, não queria saber de duas, mas de cem... Por falar em Seu Dé, certa feita ele estava no “sinuca” (bar) e uma quenguinha chegou perto dele querendo prosa: “Seu Dé, o Senhor Sabe que eu sou sua parenta”? – Quanto mais parenta é que o fumo entra, respondeu ele bem tranquilamente. A quenguinha sumiu e deve está correndo até hoje pelas bandas do “Carderão dos Guede”...
Assim como são as pessoas são as criaturas; assim como os nomes são os bimenclaturas; assim como são os santos são os são. Assim, entre os “santos”, os “são” e os "sãos" minha terra tá cheia que mais parece um céu. Pra não esticar mais essa prosa, vou ficando por aqui. Lembrando-me de Adalberto, Almir, Antônio Rubens e Araci – diletos amigos do ginasial no São Geraldo! Despeço-me, mas, com a promessa de não me esquecer de Joaldi, nem de Peroba (o Basto), nem Dona Tiliu, nem de Dona Nega. Tampouco de Aguinelina, de Dona Duquinha, do Cabinéia...
Por hoje chega. Só mais uma: minhas professoras Rosália, Dona Laura e Dona Darci. A gente não chamava nossas professoras de tia, como hoje. Essas eram as minhas preferidas que nuca hei de esquecer. Dona Laura já se foi, Dona Rosália também. Dona Darci? Nem sei. Devem estar onde estiverem incomodadas com a deseducação apregoada por essa pedagogia dita moderna.