Reminiscentia

Em minhas reminiscências, posso contar muito bem de minha meninice, pois está bem nítida em minha mente, plácida e latente, mas acessível ao meu recordar.

Minha família sempre foi pobre [até hoje], a vida não nos foi generosa, e vivemos uma vida de muita simplicidade. Meus pais mudaram do interior para a capital do Piauí e moramos em casebres, moramos no fundo de uma igreja, na Rua Areolino de Abreu, no número mil quinhentos e dez, até que finalmente meu pai adquiriu um terreno onde havia uma casa de taipa, no bairro matinha, zona norte de Teresina. Naquela Rua só havia umas quatro ou cinco casas. Dona Zefinha, tio Manoel Dantas, Seu Tavarim, Tia Oceanira e depois, seu Nonato. Do lado de nossa casa, um terreno vazio que pertencia ao Seu Sebastião, um dentista que morava em Timon, no Maranhão. Esgoto a céu aberto e a Rua Padre Acelino Portela mais parecia apenas um beco. À princípio, nossa casa, no número cento e dez, não tinha energia elétrica ou água encanada. Era à luz de lamparina. O fogareiro era à carvão, em uma lata de querosene jacaré de 18 litros, que papai tinha feito. A Água era de pote, pense num povo pobre!!

Moramos ali, até mil novecentos e setenta éramos cinco irmãos e em mil novecentos e setenta e um veio mais uma. Meu avô, Raimundo, pai do meu pai, morava com a gente. A casa era bem pequena, de modo que dormia uma parte em um quarto e outra parte na sala, em redes que eram desarmadas pela manhã.

Uma noite um ladrão teve a desventura de nos visitar. A parede estava quebrada, por uma forte chuva que desabou dias antes e meu avô havia apenas colocado umas pedras no lugar. O meliante teve todo o trabalho de tirar as pedras e entrar na casa. Passou por baixo de nossas redes, mas não achou nada para roubar e ainda tomou uma bela chicotada de pai Raimundo e escorregou na urina do meu irmão! No outro dia estávamos lá, tapando o buraco com pedras e, agora, com barro também. Com o passar do tempo, papai pode enfim construir uma casa de alvenaria. Depois, pai Raimundo foi morar numa casinha que minha tia Missanta fez pra ele, no fundo do quintal da casa dela e os filhos dele, minhas tias e tios, cuidavam dele. O homem era uma cachaça dos infernos! E sempre estava com fome... Quando ia almoçar com a gente, ele lavava as mãos e a boca ali mesmo à mesa e colocava a água de volta no prato, assuava o nariz e depois saía arrastando os pés devagarzinho e escarrando... Só por Deus! Meu vô era separado de minha avó Egídia, que morava no interior, em Agricolândia, que antes era Feitoria.

Por muitas ocasiões mamãe nos mandava para lá, para Agricolândia, na casa de minha avó materna, Luiza, a quem, carinhosamente chamávamos de Mãe iza, pois não tinha como nos manter. Mãe iza tinha muito cuidado e carinho com os netos, especialmente comigo. Fazia tudo que eu pedia. Lembro-me de mãe iza fazendo beju, cuscuz, uns capitães de arroz misturado com feijão, arroz misturado com fava ou quiabo, às vezes com abóbora e maxixe. Poucas eram as vezes em que tínhamos carne ou um franguinho na panela. Lembro uma vez que mãe iza tinha feito só arroz puro, não tinha mistura, então falei pra ela que me desse um tempo que eu iria caçar uns passarinhos... Peguei minha baladeira [estilingue], quase sempre não acertava o alvo, mas naquele dia fui e realmente dei sorte, matei uns três e ela limpou e fritou! Foi a mistura naquele dia, passarinho frito.

Na minha casa não era muito diferente. Papai viajava muito e mamãe estudava e logo arranjou um emprego e nós ficávamos sós em casa e tínhamos que improvisar. Não tinha muito o que fazer. E muitas vezes o lanche era água com açúcar e farinha, ou mingau de farinha vitaminada que mamãe ganhava da assistência social da igreja, o almoço era arroz misturado com feijão e às vezes um ovo frito, dividido por dois... Eu dava graças a Deus ir pra escola, porque lá tinha merenda e ainda, quando sobrava, a escola dava pão ou biscoito pra gente levar pra casa.

Mamãe fez o arroz e não tinha mistura. Pedi à ela um centavo para comprar um pão francês e fazer a massa, que nós chamávamos de angu e ir até o rio, pescar. Ela me dava, eu comprava o pão, tirava o miolo, pra fazer a isca e comia a casca... Lá ia eu no Rio Parnaíba, que ficava a três quadras de casa. Em pouco tempo tinha pescado uns bons peixes, piau, patacas, sardinhas e até uma tainha... Suficientes para nós por uns dois ou três dias. Mamãe tirava as escamas, ticava e uns ela passava na farinha e já fritava, outros punha no sol, pra secar e não grudar na frigideira quando fosse fritar. Mas, próximo à nossa casa, na outra Rua, Alameda Parnaiba, morava a Dona Tinoca, era pescadora, pescava à noite e durante o dia colocava o filho, Vicente, pra vender os peixes, oferecendo de casa em casa. Mamãe não tinha dinheiro e mandava a gente ir lá pedir os peixes pequenos, descartes, que ela não venderia. Muito bondosa Dona Tinoca nos dava uma bacia cheia. Que felicidade!

Duas Ruas adiante, na Rua Piauí, tinha uma quitanda de Dona Mariquinha. Mamãe tinha uma caderneta de lá para “emergências”. Mas naquela vendinha quase não tinha nada. Algumas frutas, vassouras, lamparinas, querosene, carvão, sardinha em lata, essas coisas. Mas lembro que íamos lá pra comprar bananas ou sardinha em lata e comer com arroz... Era a mistura!

Mas um dos meus maiores medos era quando papai mandava a gente ir comprar a mistura do outro lado do rio. Ali está a cidade de Timon, no Maranhão. A ponte, chamada de ponte velha, é uma ponte de metal e o piso era de madeira. Por onde a gente passava havia buracos terríveis! Cair ali era morte certa! Com seus seiscentos e quarenta metros de largura, aquele rio era muito perigoso. Quando papai mandava ir a Timon, nós tremíamos, eu e meu irmão Gregório, porque sempre éramos nós dois que íamos lá e algumas vezes eu, sozinho. Atravessávamos o rio, porque em Timon a carne era mais barata. Claro, carne sem certificado, carne da moita, como se dizia. Mas nem sempre era carne bovina que íamos comprar. Papai dava dinheiro pra comprar apenas bofe, isso mesmo, bofe de boi. Outras vezes era pra comprar tripas de boi e bucho. Fazíamos frito ou cozido. Era nossa mistura! E tinha que dá graças a Deus! Porque ele dizia que muitos não tinham nem isso pra comer...

A vida não é fácil! Hoje, penso mesmo, que outros milhões de pessoas pelo Nordeste à fora, e em todo o Brasil e no mundo, passam pela mesma situação pela qual nós passamos há quatro décadas atrás. E alguns, muitos anos depois, como eu, contarão como eu estou contando. O quadro pode ser até diferente, mas a essência é a mesma, o que muda é só a geografia.

Poeta Camilo Martins

aqui, hoje, 20.04.2013

9:30 [Manhã]

Estilo: Crônica