Ao menos por hoje
Voltei ao trabalho...era tempo. Horas de computador novamente escrevendo coisas das ciências, das políticas públicas. A ciência aprisiona o texto em suas categorias de análise, aprisiona o pesquisador e sua alma na paixão pelo novo objeto de angústia da pesquisa, faz olhar as letras soltas, humoradas, espontâneas como outro mundo tão delicioso quanto o desses textos prisioneiros. Nesses últimos dias aconteceram coisas curiosas. Transferi meu desejo de criação para esta primeira semana tão rara. Para lidar com coisas que não faço faz tempo: reler minha produção, atualizar meu currículo, recriar linhas de pesquisa, pensar financiamentos, espanar a mesa, esperar o computador novo prometido pela "chefa", rever pessoas, amigos, colegas de trabalho, enfeitar tudo em volta, pendurar cartazes e posteres, arrumar os livros, esperar a pintura da parede pelo pintor que só gosta de amarelo claro por mais que você peça ocre...Semana divertida, de papo e histórias pra contar, de mostrar a todos o site do Recanto, de ligar para as pessoas e dizer "voltei"....finalmente voltei, estou viva e disposta depois de tudo que passei. Semana de reunir uma produção de 15 anos e recomeçar. Voltei. Vou e volto de ônibus, metrô, ônibus internos, uma confusão divertida a parte, cansativa e divertida. Uma das formigas do formigueiro humano das conexões ônibus-metrô-ônibus. Nos primeiros dias duas horas para ir e duas para voltar, até achar o caminho mais curto. No caminho novo tem de tudo...na estação Estácio, conexão com a linha 2 que serve ao subúrbio do Rio, dependendo do horário não é preciso ter o trabalho de sai do metrô: é só se postar perto da porta e "te saem". É a multidão que leva você. A massa humana que se aperta caminha de tal forma que não é preciso, e nem seria possível, perder o rumo ou o caminho de saída da estação. Você não anda, "é andado" queira ou não queira tem que ir naquele sentido, seja lá para onde for...é só relaxar e se deixar levar pelos corredores e escadas rolantes até a rua. A multidão não deixa agente se perder. Ao chegar à minha instituição tudo também é muito curioso. É preciso transporte interno para chegar ao prédio em que trabalho. Hora de dar bom dia ou até amanhã aos que não podem ter ou não querem ter mais carro como eu. Nunca são as mesmas pessoas. Somos alguns mil funcionários públicos pra lá e pra cá todo dia. Caso se perca o horário dos ônibus internos pode-se ir a pé...atravessar uma passarela sobre a Avenida Brasil. Passarela animada, apinhada de camelôs de tal forma, que você já chega do outro lado da Avenida com bolo para o lanche, prendedor de cabelo, correia para pendurar celular, brinco, óculos escuros, carteira nova, casaco, guarda-chuva, sapato, pastel, pipoca, mariola. Depois do camelódromo, o calçadão já do outro lado da Avenida Brasil: uma das entradas de um enorme complexo de favelas ao redor da grande instituição...lugar de briga assídua de poder do narcotráfico. Dá pra ver das janelas dos fundos do prédio os donos do narcopoder, lá em baixo, em seus carrões blindados. Já ouvi dizer que atualmente, em horas de tiroteio pesado com a polícia, existe um ritual de desocupar as salas e sentar no chão do corredor até o silêncio reinar novamente. Momentos de socialização interna entre os ocupantes das muitas salas de cada andar. Se encontra gente que ainda não se viu, se toma cafezinho, um cigarrinho para os que fumam...adicional de insalubridade é pouco. Helicópteros sobrevoam de vez em quando a área, que inclui nosso prédio, de forma que se trabalha sob vigilância permanente. Lá dentro, escrevemos, analisamos, propomos políticas públicas saudáveis...ao sair do prédio, já se está dentro do objeto de pesquisa: a violência e a insegurança te rondam, a vida fica por um fio. E é com um frio na barriga que se atravessa as linhas de tiro de volta para casa...e se começa a dizer de novo para a filha adolescente: "- meu bem, mamãe chegou"...Ao menos por hoje (digo cá com meus botões). E vou tirar a poeira de mais um dia.