PELA PRIMA SECA VEIA
Em tempos de seca urrante, destina-se ao teatro municipal Dix-Huit Rosado, sábado 06.04.2013, para assistir ao espetáculo do Ballet de Londrina, segundo ato: A sagração da Primavera, foi encher os olhos de esperança e o coração do desejo ardente de ver no solo potiguar, ao menos vez por outra, a terra ser invadida por uma torrente de água capaz de transformar a areia “poeirenta" em barro...
Não há dúvida da beleza do espetáculo contrastante com a dureza real da vida. Ver aqueles artistas bailarinos saltando, ora para um lado ora para o outro, como se fossem pássaros a tomarem o céu por inteiro, foi de uma sutileza de alma quase inexplicável. Fechava os olhos por instantes, imaginava personagens da vida real em seus saltos querendo driblar a áspera vida da sofrida estiagem, embora os saltos não sejam cronometrados, coreografados, ensaiados... Existe pela necessidade de expressão nascente do desejo de sobrevivência, cada um por si e que a morte não seja igual para todos.
Não seja igual porque o espetáculo narrou em movimentos o ato pagão do oferecimento da virgem em holocausto aos deuses; a magia da vida brotada na crendice daquilo que se acreditava como verdade para si. O sacro e o profano na mesma área de confronto, cada um com sua s armas, armadilhas e sobressaltos, vencendo assim aquele sabedor da melhor estratégia de duelo. Destaque para o figurino cor de terra, rupestre, o encontro do homem com sua nascente natural, formando os corpos em estados primitivos, como primitivo é esse ato de ainda se fazer da seca nordestina usina de interesses de políticos coronéis, oligárquicos, maquiavélicos; entra ano, sai ano e tudo fica ao deus dará, a mercê de fadadas promessas plateicas que assistem de camarote o gado de chocalho no pescoço morrer a mingua, os pés de milho plantados serem sepultados antes mesmo de nascer e o feijão nem chegar a panela de destino ou se quer a barriga de quem deseja, porque o desejo ficou para trás, está longe, no palco da sagração da primavera. Nesse ato, o figurino na é cor de terra, é da própria terra grudada pelo suor da espera, da fadiga, do calejar as mãos em plantios sem esperança de vinga, de abrolho, de fartura...
A prima seca veia também tem os seus acordes sonantes que chocam, como chocou a plateia a sinfonia original de Stravinsky tocada pela primeira vez há tempos. São os paralelos e os elos existentes entre vida real e arte: os corpos! Magros corpos do corpo de baile, formados pelos exercícios diários na busca da perfeição, e os corpos sociais construídos pela falta de exercício repetitivo cotidiano do ato de mastigar. Magros pelo abandono, sem adornos, mornos, estatelados como se fosse pau de arara de si: meio de condução ou objeto de tortura, flagelo... Os corpos são, cada um produzido para o grande espetáculo, aquele que encanta ou este que choca, faz chorar pela ingratidão do sistema nosso de cada dia, que não nos traz alforria, nem condição de ser, nem de pertencer a uma sagração do belo na vida que nasce na dureza diária. É duro, mas é assim, os dois lados da moedas, porque se assim não for não se representa no sistema em que vivemos e no final: quem imita quem, quem é mimese de si, o que n verdade é verossimilhante?
A sagração seja feita, a sagração tenha efeito, a sagração como saga de um povo sofrido, cansado de esperar, de ter de acordar de sonhos e encontrar o nada, o caos, a incerteza, a solidão. A sagração pensada no palco, para encher os olhos de beleza e leveza e despertar para o reflexo de outras realidades e nem falo aqui de arte engajada, apenas surtos permitidos pelo dionisíaco deus que há em mim, um estado de embriagues e lucidez aparentes que me permitem ver uma coisa na outra e assim tracejar algumas linhas, vivendo a liberdade de expressão que nos assiste.
A arte representa a vida, nasce da vida, faz com a vida ida a caminhos pertos ao mesmo tempo longínquos, assim como a vida encara a arte como refúgio, subterfúgio de repensar realidades e nessas encruzilhadas, valores sejam oferecidos em oblação: a virgem da arte, a violação da vida pelos destroços e caso tivesse sido pensada aqui, quem sabe não fosse esse outro ângulo espectro no palco; Não a primavera que não nos pertence por fatores climáticos, mas a prima seca veia que nos é imposta por pura sacanagem...
Um brinde ao espetáculo e toda sua beleza e suavidade; um minuto de muito barulho e nudez as destroços da seca que arde olhos, nariz, boca, peitos e cunhão de quem nela está atrelado esperando uma corda para ser salvo.