Simplesmente, Seu Toninho

Olhei para aquela carta jogada ao chão. A poeira cobria o primeiro nome. Num impulso de curiosidade, soprei-a. Li o nome completo: Luís Antônio Sabaté. Não me lembrava de que era esse seu nome. Aliás, não me lembrava de que se chamava Luís Antônio. Ao olhar o endereço e deparar-me com “apartamento 503” foi que recordei: Toninho, era assim que o conhecia. Chamá-lo pelo próprio nome era, afinal, estranho.

Algumas lembranças começaram a surgir, as vezes em que o via subir as escadas. Mesmo idoso, mesmo com certa dificuldade, optava pelas escadas ao elevador. Isso me consumia. Eu, jovem, cansado da rotina de todo santo dia, sem pensar, direcionava o dedo para o “botão subir”. E lá ia Seu Toninho. Olhava-me sempre com aquele ar de “deixa de preguiça, meu jovem”, mas apenas dizia: “faz bem pro coração, sabe?” E então sorria, com aquele sorriso tímido, ao mesmo tempo em que acenava com a cabeça em cumprimento. Eu o retribuía com o sorriso e o aceno. Mais nada.

Lembrei-me das outras vezes em que, no hall do prédio, sempre o via desejar “bom dia, boa tarde ou boa noite” às pessoas. Ou mesmo saudá-las por estarem belas, elegantes, arrancando sempre um sorriso, mesmo das mais rabugentas. Afinal, Seu Toninho era o tipo de pessoa que deixava qualquer um bem pela simpatia e simplicidade por ele proferidas. E mais uma vez me sentia culpado. Mal olhava meus vizinhos, que dirá dizer bom dia a eles. Dizer que estavam belos? Eu mal percebia que estavam vestidos. Não, isso era tempo perdido pra mim. Mas a culpa me consumia.

Noutro dia, Seu Toninho, mesmo cansado, ajudou uma moça, que não me recordo qual andar morava, a carregar umas sacolas plásticas. Acho que foi a única vez que o vi entrar pelo elevador. Não porque estava carregando as sacolas, mas porque a jovem preferiu o elevador às escadas. Como bom cavalheiro, apenas a acompanhou. Eu estava segurando minha pasta de trabalho. Falava ao celular, provável que algo sem importância. Mas não pude ajudá-los. Não, eu não podia perder meu precioso tempo.

Viajei por duas semanas. Precisava resolver algo do trabalho. Aquela rotina de “reunião-conferência-hotel” me consumiu como ninguém. Parecia, na verdade, que estava ali por meses. Por lá, me lembrei de Seu Toninho. Não havia alguém como ele no hotel. Digo, as pessoas por ali eram sim educadas, as da recepção. Mas não porque quisessem e sim porque precisavam. Normas da gerência.

Ao chegar de viagem, deparei-me com algo estranho no prédio. Faltava algo. Mas não pude perceber o que. Na manhã seguinte, o porteiro me deu a notícia de que Seu Toninho havia falecido. Um súbito remorso me consumiu. Mais que isso, senti a dor da perda de um parente. E meus olhos se encheram d’água. Não sabia, ainda, o que fazer. Mas achava que era justo visitar a senhora viúva, mesmo que para dizer-lhe que sentia muito. A verdade, no entanto, é que queria dizer-lhe o quanto aquilo havia me abatido e o quanto Seu Toninho era um homem sem igual. Mas não tive coragem e usava das desculpas, para mim mesmo, de que o trabalho me consumia todo tempo.

Não sei ao certo, mas talvez tenha se passado dois anos desde a sua morte e, mesmo assim, suas cartas continuam endereçadas para o mesmo lugar. Sei que a viúva mudou, mas talvez não tenha tido coragem de desfazer de todos os cadastros do falecido. O porteiro, que ainda é o mesmo, às vezes pega as cartas, deixa-as sob o balcão, talvez na esperança de que ouça um “Bom dia, como o céu está lindo hoje. Que bela gravata, Dejair.” Talvez essa seja uma forma de reviver a memória. Mas hoje o porteiro ainda não avistou essa carta de Seu Toninho. Pela poeira, talvez esteja aqui há alguns dias. Agarrei-a junto ao peito. Demorei-me por alguns segundos. Levei-a para meu apartamento e deixa-a sob a mesa da sala de estar. Olhei para seu nome, mais uma vez, talvez recriando a mesma esperança do porteiro. É uma pena que o mundo seja outro. É uma pena que não existam mais tantos “Seus Toninhos” na vida.

Por Jéssica França
Enviado por Por Jéssica França em 14/04/2013
Reeditado em 25/11/2015
Código do texto: T4240327
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