de uma estrela a outra

“Mas meus queridos eu tenho certeza de aqui agora, pelo menos uma pessoa está aprendendo algo, e essa pessoa sou eu” de mim para ouvidos moucos numa sala de aula.

Um dia, num breve momento é bom, e aí vem vinte dias horríveis, sem uma palavra, sem sentimento, o tédio que não balança o vento.

"eu estou aqui para ajudar", essa é minha fala. e eu quero é fazer falar.

E não vai aqui nenhum comportamento egóico, ou narcisista, porque eu não sei o que é isso.Eu não li nada disso. Eu sei de mim para fora de mim, sem me perceber, sem me entender, sem me conhecer. E sem me enxergar. Escrito assim de forma errada.

E é assim que eu vou á escola. Num lugar que eu chamo “próximo do Heliópolis,”, mas que no mapa da cidade é o Jardim Patente, e que no mapa da gente dali é o lugar perto da Barroca, perto da Vila do Sapo, perto do Pombal, perto da Ponte Preta. Para mim é longe de tudo de onde jamais eu estive.

Estamos em retirada, todos, sempre. Queremos nos fixar, conservar. Buscamos uma corda pra nos pendurar, “nossas roupas comuns dependuradas”, “nossos trapos coloridos - In their rags of light”.

"if it be your will

That I speak no more", Linda, linda essa canção do Leonard Cohen, especialmente na voz do adorável Anthony .

Para lembrar, para registrar, para ficar, letras, musica, números, catedrais, ciência dura. Queremos ficar, mas estamos de saída.

Os alunos estão em retirada, eu tenho que ficar. “Vossa penitência acaba agora, finalizam o terceiro ano do ensino médio e vão embora, quanto a mim, senhoras e senhores, aqui permanecerei. Até quando, não sei. Cá, atrás dessas grades, estou há 4 anos e não sei quanto tempo mais tenho a cumprir de pena”

Resolvo, após muito tempo, enfrentar o desânimo, contagiante como a pior das febres, e escrever algo na lousa.

Falaremos, pois de Agricultura.

Anteriormente falei sobre a Indústria - o caderno do aluno determinou uma história da indústria brasileira: Matarazzo, et alii; Getulio Vargas, a política desenvolvimentista; JK “50 anos em 5”, e por aqui ficamos, ou quase, e quase pulamos ,

dedicamos poucas linhas a ditadura militar – oh, sim isso existiu! Ao milagre econômico -, e a política de desmonte do FHC- neoliberal of course, but no perturbe –. O caderno do aluno pula

essa parte. E chegamos, para acabar, com a Guerra fiscal. Desconcentração industrial,

“Todas aquelas indústrias, pequenas, da Alencar Araripe, saíram dali, deram lugar aos prédios, de 250 mil reais, onde, aliás, vocês não moram.” O que as pessoas que moram na Alencar Araripe vem de suas janelas é a favela de 100 mil habitantes , Heliópolis e seus 20 kilometros quadrados .

“E todas as indústrias da Vila Carioca, e o eixo Tamanduateí, a margem esquerda do fura- fila, quantos galpões abandonados?” Fim da Indústria.

Chegamos a Agricultura.

Nessa parte acontece a sensibilização, o caderno do professor ensina. Se isso é novidade para algum professor, não é para mim. Antes de qualquer coisa, o início. Chamo de apresentação:

“Trataremos disso senhores: Agricultura brasileira.

Dois pontos, dois aspectos.

Em primeiro lugar fome. FOME.

Por outro lado temos a pátria amada campeã de exportação de produtos:

Laranja – 60% do suco de laranja consumido no mundo saí da nossa terra!

E o café, e a cana de açúcar, e a soja, e o frango?”

“Temos aqui duas possibilidades: Agricultura Familiar e Agroexportação; a opção por uma ou outra é uma questão de POLÍTICA.”

Ninguém fala nada.

Mas eu conheço esse silêncio.

Sento e fico pensando.

Sou muito vaidoso. O maior ele]gio recebi da nega loira. Coordenador duma pesquisa com 120 pessoas entro na cozinha, só negrão na parada, vestidos para ir bater cabeça num terreiro. Todos ficam em silêncio. A nega loira diz:

- Ô gente, o Mauricio é o maior dos pretos!

Outra vaidade, outro elogio:

- O professor é de onde mesmo do Nordeste?

Falo tanto do nordeste que o povo pensa que sou de lá.

São coisas muito próximas de mim. Procurar entender o Brasil, saber sobre o nosso interior. Sobre como vive a nossa gente, sobre como a gente vive. Mas é preciso o diálogo. Não é uma expiação de males, bateção no peito, ladainhas de sofrimentos. Antes um compatilhar de dores, de angústias. Não é exploração de sentimentalismo, é que no diálogo poderíamos ver um destino comum de todos, uma experiência parecida, comum, mas invulgar e talvez daí enxergar uma alternativa política para isso? Como construir essa alternativa?

O Pedrão, o maior louco da Bela Vista, falava que o lugar mais longe que ele tinha ido era o Cambuci. Eu fui ali, e depois mais adiante, e onde eu vou chegar? Que tempo eu tenho pra ir, e onde eu quero chegar?

O ano está terminando, não há mais como continuar.

Faria se não estivéssemos em retirada, um registro enorme, um gráfico das exportações brasileiras de alimentos. VÁRIOS GRÁFICOS.

Os dez produtos mais importantes na balança comercial.

A importância da agricultura no PIB.

A produtividade.

O consumo de veneno, de agrotóxicos, “herbicidas”. Mais um lugar nosso de campeão mundial.

Uma seqüência histórica dos principais produtos de exportação.

E, e, e texto sobre os movimentos sociais. “ocupação” X “invasão”. A luta do campo na cidade.

Mas aqui o muito importante é falar da Migração. Os alunos são nordestinos, ou filhos de nordestinos.

Saíram de lá para cá, “em busca de melhores condições”.

Tem o aspecto da modernidade, tem o aspecto de querer sair. O José de Souza Martins, esse sim doutor, tem um texto sobre o fascínio que os óculos escuros exercem sobre o jovem migrante.

“Lamento sertanejo” é uma música tão bonita... Ah poderia fazer um CD para acompanhar as aulas...

E “tem gente, com fome, tem gente, com fome” do Solano Trindade? Parece que ouço um apito.

Toca um celular e me acorda de mais um delírio.

Estamos em retirada, e toda essa parte de gráficos, de música, de poesia,fica somente como registro de que eu poderia, PODERIA fazer.

Toca o sinal. Fim de noite de trabalho. Um rapaz vem falar comigo.

- Sabe professor quando você fala dessas coisas, a gente lembra...

Falei do nordeste em outros tempos. Falei da chegada da noite e do pai na soleira da porta, todos quietos, o pai olhando para o céu. E a chuva não chega. Mas isso faz muito tempo.

- A gente tinha uma plantação de mangas. Se tem uma coisa triste, é quando a manga não vinga. Ela fica miudinha assim, parece uma boneca magrinha. Um fantasma. Deu tanta tristeza na gente que a gente saiu de lá, sem nem se despedir da plantação. São coisas difíceis de falar.

Tome essa bala de milho, pro senhor lembrar do nosso nordeste.

Tchau, professor.

Em retirada estamos, mas eu sigo aprendendo. E me levantei, e fui também.