Bob

Bob

(*) Texto de Aparecido Raimundo de Souza.

Sempre que se entrevistava com seu psiquiatra, Taborda falava de seus problemas, de suas angústias e medos e acabava por tecer longos comentários a respeito do pequeno Bob, um infante de dez anos. Sua grande preocupação, não eram os problemas pessoais que enfrentava no dia a dia. Seus lúgubres temores se fundavam em outros mais complexos. Estavam voltados, a bem da verdade, para o bem estar de um garoto, ou mais precisamente de Bob, que vivia com a genitora, num bairro próximo.

Taborda, por sua vez, morava sozinho e tinha a senhora sua mãe dona Espingardina, em idade bastante avançada. Logo a velhinha completaria noventa e oito anos e ele, por seu turno, já não se via com muito gás para tocar a vidinha em frente. Se acaso viesse a faltar, de repente, certamente o menino, que dona Espingardina nunca conhecera, ficaria, de todo desamparado, poderia até cair em mãos de estranho, o que, certamente, transformaria sua vida ainda mal desabrochada, num verdadeiro inferno. Só de pensar nessa hipótese, Taborda se quedava aperriado e bastante preocupado com o futuro da criança. Não queria nada de ruim para o guri. Não era seu filho, mas o amava como se fosse. Por essa razão, trabalhava duro em dois empregos distintos. E tudo o que ganhava, revertia parte da renda para melhorar as condições de Bob, que perdera o pai muito cedo e, desde então, ficara sob a guarda e responsabilidade da mãe, uma jovem garota de pouco mais de vinte anos.

Taborda não tinha um caso amoroso com a mulher, de forma alguma, só a ajudava por ter bom coração. Fazia por caridade, sem pedir nada em troca. O doutor Frestrincheiquimerda, psiquiatra de Taborda, ha anos sabia de toda essa história relacionada ao menino. E mais que médico de Taborda, o especialista se transformara, por circunstâncias outras, em seu amigo particular. Assim, quando o rapaz chegava em seu consultório, o ouvia pacientemente, sem interrupções. Vez por outra, a fim de não cair no marasmo, ou correr o risco de “pegar no sono”, inventava uma pergunta nova (embora soubesse de antemão qual seria a resposta) objetivando passar o tempo e a coisa não ficar piegas demais.

Numa dessas entrevistas, Taborda segredou ao psiquiatra:

- Precisa ver que maravilha. Bob já sabe navegar na Internet. Fez um e-mail para mim. Imagine Frestrincheiquimerda. Um e-mail. E eu, que mal sei ligar o computador. (Risos) Esse moleque vai longe...

- Você comentou, na última vez em que esteve aqui, que Bob é bom em matemática?

- Nasceu com o dom dos números. Com o dom dos números ele nasceu...

- Como foi à história dos camelos?

- Três irmãos discutiam acaloradamente sobre como deveriam dividir trinta e cinco camelos entre si. Um teria direito apenas a metade, o outro a terça parte, e, o mais novo, ficaria com a nona parte. Trinta e cinco divididos por dois, dá dezessete e meio. A terça parte e a nona, de trinta e cinco, também não são exatas. Diante disso, como proceder? Saberia fazer essa conta, meu caro doutor? Diga lá: saberia?

- De forma alguma. Tenho aversão aos números, Taborda.

- Faço minha suas palavras. Confesso que não sei juntar dois mais dois. Bob, ao contrário, nossa! Bob fez a divisão na hora, num abrir e piscar de olhos. Coisa de louco...

- Gostaria de qualquer dia destes conhecer o pequeno Bob.

- Não faltará oportunidade, meu caro Frestrincheiquimerda. Não faltará oportunidade... Oportunidade não faltará.

O tempo, entretanto, continuou passando. E as seções acontecendo, sem mudanças no quadro. Tudo corria as mil maravilhas. Contudo, toda vez que o médico insistia em conhecer o pequeno Bob, Taborda saia pela tangente, desconversava, mudava de assunto. O doutor, diante dessa intransigência, passou a desconfiar. Estava claro. Havia alguma coisa errada entre seu paciente e o desconhecido Bob. Na pior das hipóteses, talvez o cidadão fosse um aliciador de menores, um pedófilo. Precisava, sem mais perda de tempo, tirar a limpo e pôr tudo às claras. Ao menos por mera precaução...

***

Dona Espingardina, mãe de Taborda, recebeu o médico com um abraço fraterno e o convite para se acomodar na sala e tomar uma xícara de café que ela havia mandado a empregada preparar. Por telefone, um dia antes, o doutor combinara que chegaria após a saída de Taborda para o trabalho. Taborda residia próximo dela, duas ruas abaixo, para ser mais preciso. Porém, o rapaz sistematicamente metódico, não seguia para a empresa sem antes dar uma paradinha na residência da mãe e dar-lhe um beijo de bom dia. Vinte minutos após Taborda ter passado para o cumprimento desse ritual, o doutor tocou a campainha.

- A que devo a honra, doutor? Algum problema com meu filho?

- Em absoluto, senhora. Só queria lhe dar um alô e ver como andam as coisas...

Dona Espingardina, entretanto, não engoliu essa explicação.

- Doutor, desculpa a minha franqueza. Pelos meus anos de experiência, tenho plena convicção de que o senhor não veio até aqui a essa hora da manhã, só para me fazer uma visita cordial. Não tenho evidentemente seu estudo, nem a profundeza da capacidade que lhe assiste, mas, creia-me, posso ver em seus olhos, pelo seu semblante, que esconde algo. Gostaria que se abrisse comigo. Algo não anda nos conformes com meu Tabordinha?

- A senhora tem toda razão, dona Espingardina. Vim aqui com outro propósito. Conhecer o pequeno Bob.

A velhota encarou o homem de branco e estetoscópio em volta do pescoço bem dentro dos olhos. Franziu o cenho, espantada:

- Bob? Quem é Bob, doutor?

O doutor Frestrincheiquimerda passou, então, a relatar em breves palavras, as seções com Taborda. Finalizou explicando o capítulo Bob.

- Não sei quem é esse tal de Bob, doutor. Meu filho nunca comentou. Tem certeza de que é esse o nome do... Do tal menino? Será que meu Tabordinha arranjou uma barrigada por ai com alguma vagabunda e não me comunicou?

O médico concluiu que a velhota - não sabia mesmo de nada, ou tinha problemas mentais ou, andava prá lá de Bagdá -, em face do avanço da idade, e, igualmente, de uma acentuada confusão mental, o que muito claramente demonstrava estar literalmente esclerosada. Aceitou mais uma xícara de café, papeou um pouquinho sobre assuntos triviais e, com uma desculpa bem convincente, quarenta e cinco minutos depois deu por encerrada a entrevista.

***

Na secção seguinte, depois de um longo papo, nele incluindo Bob, evidentemente, Frestrincheiquimerda se mostrou austero a ponto de bater de frente com Taborda.

- Você é meu paciente faz cinco anos. Mais que isso, se tornou meu amigo. Amigo e parceiro. Precisamos agora, esclarecer de uma vez por todas, um ponto obscuro que até este momento tem estado fora de foco.

- Que ponto obscuro é esse, meu amigo? O que é que está fora de foco?

- Bob. Quero conhecer Bob.

Taborda ficou sério e pensativo.

- Não chegou a hora, ainda. No momento...

- Taborda, esta é a hora. Traga Bob aqui para que eu o conheça ou darei ordens expressas a minha secretária para que não agende suas próximas consultas. Ademais, lembre-se de um detalhe. Estamos terminando o mês e você sabe que preciso renovar o atestado de capacidade mental para sua empresa. Só farei isso se você trouxer Bob até minha presença. Fui claro?

- Claríssimo. Falo tanto no menino e você nunca o viu.

- Então...?

-... Que tal na sexta?

- Para mim está ótimo.

- Combinado.

- A que horas?

- As quatro em ponto. Está legal para você?

- Perfeito.

No dia e hora aprazados, a secretária interfonou para anunciar a chegada de Taborda. Antes de mandá-lo entrar no consultório, Frestrincheiquimerda indagou se o paciente se fazia acompanhar de alguém.

- Ele está só, doutor...

-... Amanda, não há uma criança com ele?

- Não, doutor. A propósito, acho que está acontecendo alguma coisa de estranho com o senhor Taborda.

- Exatamente o quê?

- Neste momento seu Taborda está conversando com uma pessoa ao seu lado.

- Mais algum paciente à minha espera?

- Não, doutor, o seu Taborda é o derradeiro.

- Então com quem ele está proseando?

- O senhor não vai acreditar. Ele está falando sozinho, como se tivesse alguém ao lado dele. Doutor, o senhor está sentado?

- Claro que estou sentado. O que está havendo, criatura?

- Seu Taborda se levantou, pegou dois copinhos de café e ofereceu um ao invisível da cadeira...

-... Você quer dizer, ao menino?

- Doutor, por tudo quanto é mais sagrado. Já lhe falei, não há ninguém com seu Taborda.

- Por acaso o café está muito quente?

- Claro que sim, doutor. Fervendo. Acabei de passar e colocar na garrafa térmica. Aliás, ordens suas, lembra?... Espere doutor, seu Taborda... Seu Taborda está vindo em minha direção...

-... Amanda, me escuta. Haja com calma. Respire fundo. Não demonstre medo nem deixe perceber que está falando comigo...

-... Doutor, pelo amor de Deus, me fala com sinceridade: por acaso seu Taborda pirou na batatinha?

- Ele propriamente não, mas cuidado. O garoto que está com ele...

-... Doutor, pela milésima vez, não tem ninguém com seu Taborda...

-... Amanda, por favor, me escuta. Se a criança perceber seu nervosismo, sua insegurança, pode ficar furiosa, fora de controle, quebrar tudo e culminar jogando a porcaria do copinho de café quente no seu rosto.

(*) Aparecido Raimundo de Souza, 60 anos, é jornalista.

Aparecidoescritor
Enviado por Aparecidoescritor em 13/04/2013
Reeditado em 13/04/2013
Código do texto: T4238942
Classificação de conteúdo: seguro