A aula de Dona Marina

A aula de Dona Marina e minhas histórias infantis

Dona Marina surgiu esbaforida, prendendo nervosa, o lenço colorido ao pescoço, fugindo do frio e do vento. Entrou na sala e se recompôs rapidamente. Cumprimentou a turma, esclareceu alguns pontos que ficaram vagos da aula anterior e colocou-nos, de sobressalto, o assunto da prova, que seria na semana seguinte. Eu sentava entre dois colegas mais chegados. À minha volta, principalmente nas cadeiras da frente, as meninas que voltavam os olhos e os narizes vermelhos, cada vez que um de nós fazia qualquer gracinha. Camilo estava ao meu lado e comentava os gibis que havia trocado no sebo. Luís encantava-se com o torneio feito por Seu Matias, uma espécie de patrono dos meninos, jogadores de várzea que se esforçavam para fazerem bonito nos campinhos de futebol. Eu estava quieto, pensando no meu jogo de bola de gude, entretido nas histórias que criava, escrevia e interpretava sozinho, batendo nas mesas com um biscuí de minha mãe, executando a sonoplastia, embalando as vozes em inúmeros matizes, para desenhar cada um dos personagens. Sempre um primo ou prima me acompanhava. Tinham paciência para ouvir as histórias e pouco davam palpite sobre o desfecho que eu mesmo arregimentava. Importava talvez a nossa cumplicidade em criar um cenário só nosso, de fantasia, sonho e satisfação. Tais como na rádio, com suas novelas melodramáticas, cheias de lágrimas, tiros e assassinos perdoados, assim eram as nossas histórias. Tão cheias de emoção quanto as delas. Por isso, naquele dia, estava alheio, lembrando de nossos encontros, esperando ansioso que acontecessem, que a aula acabasse, que Dona Marina desse o bom dia fatal e nos deixasse livres, para vivermos os nossos sonhos. Ela percebera a minha alienação e naquele dia ventoso, parecia mais atenta e perspicaz do que o normal. Perguntou-me o que estava acontecendo comigo, o porquê de não estar prestando atenção à aula e a partir daí, informou-me uma série de medidas relacionadas à prova, inclusive reprimendas para melhorar o meu comportamento. Não sei porque cargas d`água, não me contive quieto e passei a ironizar tudo o que dizia, todas as frases que expressava ou questionamentos que nos fazia para por em prática a lição. Lembrava das perguntas e expressões caricatas que as novelas esculpiam em suas histórias e comecei a falar tal como fazia em minhas sessões solitárias ou ao lado de meus primos. A cada explicação, eu respondia com um “não diga!”, ou a cada pergunta, exclamava “Meu Deus!” ou “Cale-se!”. Os meninos ao meu redor, dobravam-se em risadas hilariantes. Aquela atmosfera de alegria, me estimulava a ir mais longe. Então, passei a fazer uso da pasta, que era uma pequena mala de couro, com uma alça, semelhante a dos executivos (moda, naquela época), de forma a parecer-se com um acordeão. Não ligava se ela estava preocupada comigo ou mesmo indignada, por ser interrompida em sua aula. Ao contrário, tudo aquilo me divertia muito, principalmente porque percebia a molecada se divertir imensamente. Algumas meninas faziam caras e bocas, denunciando censura. Olhavam para a professora, desconfiadas, exigindo com os olhares que ela tomasse uma providência. Outras, mais brejeiras, riam despudoradas, do meu tango imaginário.

Repentinamente, a professora emudeceu. Exigiu com energia, que nos calássemos. Eu, larguei a pasta devagar, depositando-a aos meus pés, fingindo que nada havia acontecido. Empurrei-a para baixo da cadeira e selecionei algumas páginas do livro de gramática, sinalizando uma provável pesquisa. Silêncio absoluto. Ainda de cabeça baixa, ouvi quando Dona Marina citou o meu nome com a voz metálica e o timbre mais nítido que pôde soar em toda a sala. Simulei qualquer coisa, resgatar a borracha do solo, impedir a caneta que escorregava pela reentrância do tampo da escrivaninha, segurar uma folha que despencava providencialmente de dentro do caderno. Mas não havia como evitar: meu nome fora pronunciado claramente e em som bastante elevado. Levantei-me ante os olhares assustados dos colegas. Ela exigiu que eu fosse até a frente. Ergui-me e fiz o primeiro gesto em obediência, estimulado, acreditando que ela me mandaria para casa. Era o máximo que poderia me acontecer. Até surgiu um pensamento célere, como um raio, que me deixou quase feliz. Iria para a casa, voltaria para as minhas histórias, criaria outras e as interpretaria. Quem sabe, não colocaria Dona Marina como vilã? Mas foi só por um segundo. Antes que eu desse o segundo passo, ela gritou imperiosa, que eu trouxesse a gaita, ou melhor, a pasta. Fiquei confuso, o que ela queria dizer? Então, eu deveria ir embora realmente. Levaria a pasta comigo. Obedeci, mas agora um pouco inseguro. Havia alguma coisa em sua voz e principalmente no olhar que não condiziam completamente com minha imaginação. Estavam além. Desviei das carteiras, sorri sem graça para Camilo que esticava o pescoço, jogando dois olhos grandes, saindo da órbita em minha direção. Passos incertos, mãos trêmulas, segurando a pasta pela alça. Aproximei-me devagar para a frente, como se me dirigisse ao palco do teatro. Percebi que Dona Marina havia sentado novamente e se escondia atrás da imensa escrivaninha. Tentei dar alguns passos até ela, mas insistiu que ficasse ali, bem no centro, próximo ao quadro-negro, para que todos me vissem, sem perder nenhum detalhe. Perguntei, balbuciando: _Então...? – não completei a frase, não foi preciso. Ela foi determinada, objetiva, categórica: _Agora toca a tua gaita. Segura-a como estavas fazendo e toca, de modo que todos te vejam e te aplaudam. O palco é todo teu. – e dirigindo-se ao pessoal, acrescentou, irônica: _Aplaudam o palhaço. Vamos dar um tempo para que ele apresente o show que estava fazendo no fundo da aula.

Eu olhei para a turma, olhei para ela, olhei para mim mesmo. Nem sei se com ódio, ou comiseração por mim mesmo. Não havia alternativa, mas uma coisa, eu tinha certeza, não tocaria de jeito nenhum! Ela então ameaçou mandar-me embora e só voltaria com um de meus pais. Foi a saída digna da qual eu não abriria mão. Respondi com a voz sumida, que não tocaria. Ela então me expulsou da sala, imediatamente, sem qualquer tolerância.

Saí aos tropeços, ainda ouvindo do pátio da escola, as risadas da turma. No outro dia voltei com minha mãe e percebi em Dona Marina uma dualidade que desconhecia. Era outra pessoa, gentil, educada, suave. Nem parecia a vilã do dia anterior. Até me elogiara. Só restara a corrida de passos miúdos, fugindo do vento do inverno, segurando o lenço colorido para não lhe cair da cabeça, fazendo um nó suave no pescoço e começar uma outra aula, como se nada houvesse acontecido.

Gilson Borges Corrêa
Enviado por Gilson Borges Corrêa em 24/03/2007
Reeditado em 02/05/2007
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