CHAME O LADRÃO, FILHO!

Fui jovem no auge da ditadura militar, um tempo duro para alguns, mas não para mim, que sempre “li jornal de anteontem” e fui universitária da Fafic- Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Colatina, onde ninguém se envolvia com política. Daquele tempo, guardo boas recordações das colegas e das músicas que ouvíamos, sobretudo as de Roberto Carlos e Chico Buarque.

Tenho orgulho enorme de ter fotografado o “Rei” no Guararema Clube, quando Jacy Roque Pratti o trouxe a Linhares, e sou frustrada porque nunca assisti a nenhum show (ao vivo) do cara que se casou com atriz Marieta Severo, e produziu letras e músicas fantásticas.

Relato isso porque acordei com o refrão de uma de música do Chico na cabeça: “Acorda, amor”. Não sabia todos os versos, por isso fui buscá-los na internet:

“Acorda, amor/ Eu tive um pesadelo agora/ Sonhei que tinha gente lá fora/ Batendo no portão, que aflição/ Era a dura, numa muito escura viatura/ Minha nossa, santa criatura/ Chame, chame, chame lá/ Chame, chame o ladrão, chame o ladrão. Acorda amor/ Não é mais pesadelo nada/ Tem gente já no vão de escada/ Fazendo confusão, que aflição/ São os homens/ E eu aqui parado de pijama/ Eu não gosto de passar vexame/ Chame, chame, chame/ Chame o ladrão, chame o ladrão/ Se eu demorar uns meses/ Convém, às vezes, você sofrer/ Mas depois de um ano eu não vindo/ Ponha a roupa de domingo/ E pode me esquecer/ Acorda amor/ Que o bicho é brabo e não sossega/ Se você corre o bicho pega/ Se fica não sei não/Atenção/ Não demora/ Dia desses chega a sua hora/Não discuta à toa, não reclame/ Clame, chame lá, chame, chame/ Chame o ladrão, chame o ladrão, chame o ladrão/(Não esqueça a escova, o sabonete e o violão)”

Eu cantarolava os poucos que eu sabia, sem perceber que eles eram uma denúncia daquilo que, apenas bem mais tarde, eu soube que acontecera nos porões da ditadura. Percebi, então, a ironia perfeita do refrão, pois quando nos sentimos ameaçados ou ultrajados, o normal é que sintamos o desejo de chamar a polícia e não o ladrão. Depreende-se que, se preferimos chamar este àquela, é porque ela deve ser pior do que ele, não é mesmo?

Entendo, porém, que esse refrão não sirva apenas para evidenciar questões políticas de outrora, mas também antigos problemas sociais e culturais, e é por esse motivo que ele vem à minha cabeça, quando leio coisas repugnantes como o caso da jovem americana que foi estuprada por um bando de “animais” dentro de uma van, no Rio de Janeiro, enquanto o seu namorado francês, apanhava e tinha de assistir a tudo.

Onde estava a polícia carioca que não fiscalizava o transporte clandestino? Onde estavam os pais e professores que não conseguiram transformar aqueles “bichos” em gente? Até que ponto são culpados todos os que desconsideram que apenas a educação pode transformar seres bípedes em pessoas? O que pensar de uma nação onde as falhas da educação tornam tênues as fronteiras entre a polícia e os bandidos?

Sou educadora, estou consciente de que ninguém consegue dar o que não tem e guio a minha prática na certeza de que a efemeridade da vida deve ser o principal motivo para gastarmos o nosso tempo nesse planeta, conspirando em favor dos bons valores e da humanidade.

Com tanto “mau exemplo” da minha parte, meus filhos internalizaram minhas “loucuras” e o mais velho, em vez de cursar uma ciência “chique”, que lhe rendesse muito prestígio e dinheiro, escolheu ser antropólogo e estudar índios. Quer coisa mais humana, mas ao mesmo tempo “desnecessária”, principalmente para os imbecis, que acham que os silvícolas têm mais é de morrer?

Sua pesquisa de doutoramento seria feita no Paraguai, em uma das aldeias dos Ayoreos, mas teve de ser interrompida em virtude das duas tentativas de extorsão que ele sofreu por parte de policiais daquele país. Ao saber do fato, senti-me como devem ter se sentido os pais da americana e do francês, a quem me referi acima: decepcionados com a raça humana. Se eles conhecessem o refrão do Chico, talvez também dissessem: “Chame o ladrão, filho!”

NORMA ASTRÉA
Enviado por NORMA ASTRÉA em 12/04/2013
Código do texto: T4237209
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