Pedância

Olhem só quem vem lá. Rá! É a pedância, travestida em palavra desusada. Desce-lhe pelo corpo longo traje de gala, com rendas anacrônicas. Esse vestido também... Ah, o vestido. Tem espartilho no verbo e armação no saiote. No decote farto, carrega seus colares de contas onerosas, rebuscadas. Assim, ela acha que pode captar as atenções de um marido que lhe possa admirar os pormenores.

Esse perfume de fragrância complicada, confunde o olfato. De fato, tantas notas cifradas ao mesmo tempo faz colocar o estômago em crise de enjoo. Quando pede informação, dá de fazer charme com um palavreado em francês:

— Excusez-moi, s'il vous plaît.

— Veio de onde minha senhora?

Quer o quê?

Ora, com licença, por favor!

Vá tomar conselhos no estrangeiro

que eu tenho só ensino médio.

Agora foi que deu de me seguir pelas ruas, arrastando um salto altíssimo. Já lhe soprei conselhos: se cair por essas calçadas esburacadas, trate de pedir socorro em português. Ela parece imune e ignora solene as recomendações. A lotação da via pública e o comércio popular desregulamentado não a desconvidava do passeio com sua bolsa Louis Vuitton original, é claro.

— Olha o tomate, dez reais o quilo!

Fomos interpelados pelo sonoro apelo do ambulante. Dez reais o quilo? Um disparate! Ela se sobressaltou, mas num instante apontou a iguaria como se quisesse comprá-la. Tirou da carteira uma nota de euro e estendeu os braços no afã de ter seu desejo atendido. Tive que dizer ao simplório comerciante para aceitar aquela moeda, pois assim, bastaria trocá-la mais tarde e seu lucro seria quintuplicado. Ele concordou. A nota foi trocada por um quilo de tomates. Moeda estrangeira quem é que não quer? Eu é que não compro mais tomates e aliás, nem posso.

O clima subtropical paulistano fez com que ela se rendesse aos lenços umedecidos devidamente trazidos para os distúrbios climáticos, a sudorese não podia roubar-lhe a beleza, mas nem por um minuto. Foi quando avistou um chapéu de palha de abas enormes com um laçarote de cor grená e novamente salpicou:

— Merveilleux, très chic!

— Não senhora, isso não é uma butique!

Vai ver ela estava achando tudo aquilo maravilhoso e muito chique, vejam só... Essa minha nova amiga é mesmo muito espirituosa. Entrou afoita à loja me puxando pelo braço, praticamente pedindo para que eu fosse seu interlocutor na aquisição de sua nova paixão. Tudo bem, tenho sim a Lua em Câncer e um coração mole pra chuchu.

Acionei um vendedor e indiquei o tal chapéu, ela experimentou e pareceu gostar horrores. Desfilou em frente ao espelho por diversas vezes, alternando passos e movimentos de singela afetação. Abriu a carteira e pagou em euro! Enfim, saímos e ela muito radiante aduziu:

— Au revoir monsieur, je suis dèsolè, merci.

Juro que me senti constrangido com esse seu último comentário. Desolado, de fato. Foi embora carregando duas sacolas plásticas de pouco luxo com o resultado de suas compras vespertinas em uma das mãos e sua bolsa Louis Vuitton original em outra. Mimetizou-se na multidão das calçadas e sumiu.

Melhor que assim fosse. Já não aguentava mais fingir entendimento. Imaginem só meu martírio de estar lado a lado com uma obra tão pitoresca quanto aquela. Com o perdão da observação, uma senhora saída da Era Vitoriana. Realmente, esse lhe seria um nome perfeito, Vitoriana. Francamente, pagou em euro? A ostentação foi por demais deselegante. Eu diria: cafonérrima!

Felix Ventura
Enviado por Felix Ventura em 11/04/2013
Reeditado em 26/06/2021
Código do texto: T4236153
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