Café preto com caju
Era um daqueles domingos em que me convido para almoçar e como sobremesa me pago um café preto com caju, levando mais tempo do que o necessário para degustar os dois. De verdade, ambos não passam de pretexto para que eu possa olhar em volta, sem pressa.
Avistei-a de longe vindo em minha direção. Empurrava o carrinho cheio de compras e usava vestido floral, rasteirinhas brancas e um sorriso pintado no rosto.
Sinto uma admiração quase incontrolável por pessoas que sorriem mesmo quando estão sérias. Tenho vontade de aplaudi-las ao vê-las passar com seus cartazes faciais de mensagens subentendidas: “Estou sempre de bem com a vida, ainda que, por vezes, ela resolva ficar de mal comigo.”
Entre um gole de café e uma mordida no caju a mulher de vestido estampado se aproximou de uma mesa próxima a minha, trocou uma dúzia de palavras com os ocupantes (tão desocupados quanto eu) e se infiltrou pelo corredor das tortas arrastando os pés como se estivesse calçando patins. Achei o máximo!
Simular patinação dentro do supermercado não é para qualquer um. Pelo menos não para qualquer um que já tenha passado dos doze anos, e a mulher de vestido estampado, certamente, há muito passara dos trinta.
Não me canso de admirar pessoas que desfilam a coragem livre das posturas convencionais e trazem atrás de si o sol da felicidade para iluminar o mundo de todos que estão a sua volta. Vibro com impressão de sorrisos marcantes marcados nas rugas de alegria dos rostos que contagiam outros rostos. Tal qual a senhorinha de cabelos roxos que ri deliciosamente para a amiga numa conversa aparentemente agradabilíssima (enquanto desliza pela esteira rolante com seu cachorrinho no colo) abrindo para mim a porta do mundo da falta de obrigações e da leveza permissível que só a idade avançada parece permitir entrar.
Confesso que um dos efeitos da combinação do café com caju depois do almoço de domingo é fazer-me conjecturar sobre o tanto de pessoas que desfilam engessadas em seus papéis rotineiros de enredos cheios de compromissos pré-agendados, e de indivíduos que esperam para extravasar na cor do cabelo e na intensidade do riso só depois da aposentadoria.
Domingo foi feito para os exageros e é, contraditoriamente, o excesso de imaginação no instante da sobremesa que me entristece por me fartar dos fatos reais que tornam as vidas tão irreais e sem graça.
Arrastar os pés pelo supermercado parece tão estranho; desfilar com cabelos roxos pela esteira rolante é tão esquisito; sorrir a todo o momento é tão insano; rir alto é tão deselegante; dançar quando o corpo pede é tão vergonhoso; falar o que se sente é tão perigoso... E lá se vão milhões e milhões de seres esgueirando-se pelos corredores estreitos de suas existências, cheios de prescrições, indicações e recriminações... Fingindo que se movimentam.
Quero mais estranheza de patinadores inventivos e esquisitice de cabelos roxos em minha vida. Preciso da insanidade dos sorrisos constantes e da deselegância das gargalhadas soltas em todos os meus dias. Necessito da vergonha tonta ao tentar acompanhar os meus passos de dança e do precipício que se abre a mim sempre que digo que amo alguém, e amo muito! Careço de mais domingos nas minhas semanas para exagerar na emoção e ver pessoas deslizando, depois de duas doses de café preto com caju.
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