Na sala de espera do aeroporto, um homem contemplava a beleza feminina por trás do manto: um rosto lindo, salpicado de sardas, como minúsculas estrelas pontilhando o céu. Os olhos esverdeados eram separados por delicada formação cartilaginosa, sobre a qual se podia dizer oh, que nariz bonito! Bonito também deveria ser aquele corpo coberto por longas vestes — uma freira — quanta beleza guardada nas dobras do manto!
— Morgana! É você?
A freira o olhou com suavidade e sorriu docemente.
— Meu nome é Paola Rhoden Napoleone... Quero dizer: irmã Paola e fechou o livro que estava lendo.
Nilmário passou as vistas ligeiramente na capa.
— Essa foto...
Não concluiu a frase e Paola completou:
— Foi a última vez que estive com meu pai. Eu tinha dezessete anos. Pouco tempo depois, ele morreu.
— Linda, muito linda!
— A música é linda. Aprendi a gostar de Pink Floyd com meu pai.
— Não falo da música — disse receoso de ser castigado pelo Céu, pois sabia que as consagradas se consideram servas e esposas de Deus. Outra vez, Nilmário a olhou, demoradamente... Aqueles olhos puxando para o verde deixaram-no estonteado. “Como se parece com a Morga!... Até o modo de sorrir lembra a ex-colega de escola!...”
Ele enrubesceu. Sentiu a cor do beijo de Morgana tocado pelos ventos Maristas durante o campeonato intercolegial. “Não, não pode ser! A Morga, uma freira? Não era ela!” Paola pareceu pura de corpo e de mente como Morgana. Sim, doce e pura como a Morga quando há muito tempo disse: “Parabéns, campeão!...E pregou no rosto dele um beijou ingênuo, infinitamente infantil.
— A madre vai a Paris?
— Desço em Dakar!
— Sou Nilmário. Estudei em colégio de padres.
A freira recolheu o livro que largara na cadeira vizinha e pôs na bagagem de mão. Diferente de Lispector que não lia seus textos, depois de entregá-los ao editor, Paola leu e releu “Dezessete Anos”, até porque, seria traduzido para edição na Itália.
Persistiu ainda nele a estranha idéia do retrato de família viajando na carne.
— A senhora é irmã de Morgana? Nunca soube que ela tivesse uma irmã mais velha e tão bonita quanto. Falo de Morganade Castro Napoleone. São parentes?
— Não! Embora meu nome de registro seja Paola Rhoden Napoleone. Não somos parentes. O nome não quer dizer nada.
Nilmário mudou o rumo da prosa e contou sobre o desejo que o reitor do Marista tinha de tornar padre muitos meninos do colégio.
— Chegaste a fazer o teste vocacional?
— Não! Agendei uma entrevista com o Bispo, por insistência do Reitor, mas não compareci. Naquele mesmo dia, apresentei-me ao rubro-negro. Defendi sua bandeira até final do ano passado, quando meu passe foi vendido ao Saint-Etienne. Naturalmente, já não tenho o mesmo vigor dos anos oitenta, quando conquistei a taça para nossa turma do colégio Marista. Foi um gol lindo! Decisivo para nossa vitória. Nunca soube que Morgana tivesse alguma irmã, mas a senhora se parece tanto com ela...
— Talvez o sejamos — e sorriu no intervalo da dor — Meu pai jamais me falara de outra família. Depois que minha mãe faleceu, ele me internou no convento de freiras e raramente aparecia por lá. A Madressilva me contou tudo que sabia dele. Mas não era muito... Nos primeiros cinco anos, visitava-me uma ou duas vezes por mês, depois disso, sumiu... Fiquei mais de dez anos sem vê-lo. A madre superiora foi transferida para um convento no Pará e por mais que eu tentasse contato, não conseguia. Talvez ela já soubesse da morte de meu pai, ou não queira acrescentar maiores informações sobre meu passado sofrido. Eu também nunca disse que sabia da morte dele — Fez uma pausa, respirou fundo e prosseguiu: Esta será minha última missão! Ficarei alguns meses em Dakar e em seguida, deixarei o hábito. Pretendo tornar-me cidadã italiana, tenho um pé no Brasil e outro na Itália. Sinto muito decepcioná-lo por não ser parenta de Morgana. Deus utiliza um molde para cada pessoa, e jamais repete o mesmo modelo de rosto. Há sempre alguma coisa que diferencia uma pessoa de outra. Somos plural e singular, um ser coletivo e ao mesmo tempo, individual e único para Deus. A propósito, no VIII Congresso Missionário Latino-Americano de 2008, no Equador, um padre que se identificou como Victor Augusto me fez pergunta semelhante. Tive medo de penetrar no misterioso labirinto de meu passado e me calei. Preferi não revelar o pouco que sabia sobre minha vida e minha história. Só o GALILEU conhece a dor escondida na burca da samaritana. Disse finalmente, tentando por um ponto final naquele assunto.
— O padre não deu maiores informações sobre Morgana?
— Não! Não dei esta oportunidade a ele. Aprendi com o anonimato uma forma de maquiar o rosto e não rasgar lembranças. Estávamos no Coliseu General Rumiñahui, na cidade de Quito e depois daquela hora, evitei novo encontro, misturando-me com a multidão. Eram mais de três mil pessoas de diversos países da América do Norte, Sul, Central e Caribe. Delegações religiosas, movimentos eclesiais e jovens missionários leigos. Foi muito fácil me esconder de um brasileiro no meio de tanta gente estrangeira. Meu pai falava pouco. Parecia esconder uma de suas faces, alguma coisa que o incomodava, alguma coisa que seu coração queria me dizer e ficava presa como um pedaço de maçã na garganta de Adão. Ele também percebia um nó em minha garganta e nos calávamos. O silêncio guarda muitos mistérios — disse finalmente a freira, enquanto segurava uma lágrima que tentava escapar pelo canalículo nasolacrimal.
A conversa foi interrompida por uma voz firme quase mecânica: “Atenção senhores passageiros do voo ABS 815 com destino a Paris, por favor, dirijam-se ao Portão B.” Sem nenhum tumulto, os passageiros se organizaram em fila única. Fernão também se apresentou e se identificou como operador de voo, ainda assim, encontrou dificuldade para embarcar no aeroporto do Rio, porque debaixo do terno, o colete salva-vidas o deixava com o tórax desproporcional, largo, muito largo como de um jogador de futebol americano.
O curso para obter licença de pilotar avião que concluiria na França, completava as horas mínimas de voos necessárias para conquista do brevê. Ele não queria apenas uma carta para voar. Depois do brevê, ingressaria na Esquadrilha da Fumaça e faria acrobacias assustadoras. Sua coragem e habilidades fariam de Hemor um velho atobácom os pés presos na areia da praia.
Quando Fernão entrou na aeronave, os demais passageiros já estavam sentados e os comissários de voo, preparavam-se para a demonstração de uso dos equipamentos de segurança. Sentiu-se uma gaivota nas mãos de Richard Bach... Abriu o livro com avidez; aguçou a imaginação e foi engolindo cada página como se nunca houvesse lido o livro antes. Ele queria ser diferente dos outros seres de sua espécie: não mataria por vingança, ao contrário, superaria suas próprias forças, quebraria as barreiras e limites individuais, dominaria o céu. Não seria mais um ser qualquer à procura de ração. Queria fazer acrobacias que deixassem Vannini encantada, arrependida de tê-lo trocado por Hemor. Ele era um Fernão e jamais agiria como Menelau pedindo ajuda a Agamêmnon, para retirar a esposa dos braços de Páris. Faria tudo sozinho, aperfeiçoaria sua técnica de voo, de modo que nenhum piloto voasse tão bem quanto ele. Poderia até simular um acidente aéreo, destruir a Casa Dourada ou o Castelo Branco para retirar sua amada dos braços do rei de Siquém e finalmente ter uma vida de príncipe. Enquanto divagava, um comissário apresentava os equipamentos de segurança e uma voz suave descrevia o modo de usá-los. Aquela voz era de Vannini, não tinha dúvida: Vannini estava a bordo.
O tempo lá fora parecia ruim, de quando em vez uma carga elétrica disparava flashes na pequena janela da aeronave, revelando rostos amedrontadamente pálidos. Interessado no conhecimento de aeronáutica que a leitura oferecia, Fernão leu Capelo Gaivota, muitas vezes no intento de aprender a superar barreiras e limites inerentes à sua espécie. Como o ciúme. Este mau sentimento era o grande obstáculo que precisava transpor. Precisava estar aberto de corpo, e de mente, quando desembarcasse em Paris e fosse conversar com Vannini.
A inveja tinha sido o vulcão aceso com a tocha do diabo que seduziu Siquém a raptar Dina. Vulcão que também ardeu na alma de Hemor quando tomou Vannini para si. Fernão decolaria em voo experimental no porta-aviões Charles de Gaulle e pousariano coração de Vannini para nunca mais decolar. Queria superar os limites de suas forças; rasgar as páginas que registram a vida de um homem traído e não esconder de si mesmo o segredo que muitos já sabiam: sua mulher o trocou por um piloto que voava sem licença para voar. Pobre diabo este Capelo. Não tinha boas lembranças de Paris...