Praia Secreta - Meu Pai e Eu

— Pronto?

— Pronto! — gritei, segurando firme no ferro que sustenta a sela.

Descemos a avenida principal, numa bicicleta branca, ele pedalando e eu atrás, na garupa — dividindo espaço com uma mochila velha, cheia de bugigangas artesanais. Cinco e pouco da manhã; ainda dava para sentir aquele friozinho da madrugada, e as luzes dos postes acesas davam um ar de mistério. O sol estava nascendo; uma pequena claridade surgia lentamente, como se o céu estivesse sendo rasgado por uma lâmina brilhante. O dia será ensolarado. Bom para uma pescaria. No final da avenida, onde um muro separa o rio da civilização, fomos obrigados a entrar numa ruela poeirenta. Já dava para ouvir o barulho de água e canto de pássaros — mas não ficaríamos aqui, estávamos partindo para um lugar especial, uma praia secreta. Pelo menos foi o que ele, meu pai, disse. Descemos e fomos caminhando, lentamente, pois os pés afundavam no barro vermelho.

Meia hora de caminhada, pés doendo, o sol a todo vapor, chegamos enfim numa parte asfaltada. Montamos na ambulância — apelido da magrela, por ser branca —, e seguimos. Para todo lado só se via mato, vez ou outra uma casa se revelava — raramente duas — no meio daquele verde. Meu pai ameaçava parar, olhando para todos os lados, como se procurasse algo. Parou de repente. Achou. Desceu — fiz o mesmo —, pegou a mochila, abriu, tirou uma faca e um pote de vidro, entrou na mata e sumiu. Quando ameacei segui-lo ele já vinha com o pote cheio de minhocas. Iscas.

— Agora é pra valer… — disse, colocando tudo de volta na mochila.

Não demorou muito, — as pedaladas ficaram mais rápidas — e chegamos numa pequena abertura, uma trilha. Logo no começo tivemos que parar; uma cerca de talos bloqueava a passagem. Passei primeiro — com a mochila nas costas — , ele suspendeu a bicicleta , passando-a para o outro lado e pulando em seguida. A caminhada não foi fácil — um caminho apertado, estreito — algumas plantas ficavam presas nas nossas chinelas, pisávamos em poças de lama, ouvíamos coisas rastejando — ocultadas pela vegetação — bem próximo da gente; se eu estava achando ruim, imagina quem estava levando uma ambulância nas costas. Para nossa alegria a mata estava se abrindo, revelando apenas algumas árvores, afastadas umas das outras (plantadas em fila indiana) — mangueiras. Em pouco tempo já estávamos pisando no mesmo barro vermelho, só que agora ele ficava fixo no chão — estava molhado. Continuei caminhando, só parei quando ouvi o barulho do tripé da bicicleta sendo baixado. Meu pai, com as mãos na cintura, ficou parado, sério, encarando o restante da trilha, bem ao lado das árvores (talvez oito?). O que aconteceu em seguida foi irreal, mas me fez entender o porquê de ele ter pedido segredo a respeito do passeio. Estávamos entrando em uma espécie de mundo mágico — que seu pai, meu avô, deve ter revelado a ele e aos meus oito tios (ele, meu avô, dizia que tinha testículos premiados) —, por isso também me pediu para decorar o caminho.

Começou com uma brisa, que foi aumentando de velocidade, e se transformou numa ventania nervosa. As árvores pendiam para todos os lados, balançavam, dançavam. Eu estava com o medo estampado na cara (com medo de sair voando a qualquer momento) e meu pai ria feito bobo — como uma criança que encontra, anos depois, o brinquedo preferido debaixo da cama. A bicicleta caiu, seguida de um barulho alto, fazendo-me recuar para trás de uma das mangueiras, a primeira da trilha — o tronco era bem grosso, para minha sorte. Não demorei cinco segundos; meu pai agarrou a mochila (que eu já havia esquecido), que continuava presa às minhas costas, e me puxou para o seu lado. “Veja!”, gritou, apontando para vários pontos brancos vindo na nossa direção. Foi tão rápido, e passaram tão próximas de nossas cabeças, que eu fiquei confuso se eram mesmo gaivotas — sim, gaivotas! O vento entrou nos meus olhos, e boca; lagrimas desceram e pude sentir um gosto salgado — gotículas de mar trazidas pelo o vento.

— É agora! — gritou, novamente.

As árvores tombavam, uma por uma, em sequencia; assim que batiam no chão, as folhas secavam e se despregavam dos galhos. O vento nem estava mais tão forte assim — corria uma brisa leve, que eu nem notei; misteriosamente o efeito dominó parou justamente na que me agarrei há poucos segundos. Meu pai correu e sentou-se num dos troncos caídos; fez um sinal para que eu o seguisse. As gaivotas rodopiavam bem perto da gente. Sete, ao todo. De repente uma explosão. Não esperei um segundo chamado; dei um pulo, quase caí na aterrissagem, e me sentei no tronco, bem atrás dele. Os enormes buracos, onde antes ficavam as raízes das árvores, se encherem de água verde, limpa — saíam como pequenos vulcões em erupção, espalhando água para todos os lados. Fiquei surpreso, com medo, confuso, que não esbocei nenhuma reação — fiquei paralisado — e meu pai morrendo de rir na minha frente. Rapidamente o chão ficou inundado, tingindo o barro de branco, transformando-se em areia. Misteriosamente as outras árvores ficaram imoveis. Não subiram.

— Pronto?

— Pronto — sussurrei, acordando.

— Hein? — impaciente.

— Pode ir…

Descemos a avenida principal, desviando de buracos e carros, numa bicicleta branca — com a tinta já gasta, um ferro velho ambulante; ele pedalando e eu quase pendurado, me equilibrando na minúscula garupa — levando livros numa bolsa antiga, que meus ombros já reclamavam do peso. Sete horas da manhã, o sol já queimando, eu morrendo de preguiça e a cidade já em ritmo acelerado — um inferno. Passamos quatro quadras, e enfim dobramos em uma rua do lado direito. Na rua há uma ladeira, e somos obrigados a descer — pois o ferro velho não aguenta —; em dias normais caminhamos lentamente, mas hoje estou super atrasado e tenho de correr. A ladeira não é grande, quando se corre. Meu pai chega pouco tempo depois, esbaforido, a cara sempre fechada, cigarro aceso na boca, com as cinzas caindo na barba — já estávamos próximo, umas três quadras, do colégio. O sinal havia tocado, com certeza, pois a rua estava vazia. Montou na bicicleta e fez sinal para que eu subisse na garupa. Quase caio, mas segurei em sua cintura , puro reflexo, — e com a mesma rapidez a soltei — que se assustou e começou a pedalar rápido. O odor que vinha dele era de fumo misturado com suor. Talvez tenha esquecido o caminho para a tal praia.

Ediie Krdozo
Enviado por Ediie Krdozo em 11/04/2013
Código do texto: T4235067
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