'Albertão', Um Relato.
Era sempre assim; nenhuma vontade, a princípio. Mas quando o cortejo de pessoas passava, levando bandeiras enormes, assoprando apitos, alguns levando almofadas, rádios de pilhas e garrafas com água, a gritaria começava e os primeiros fogos eram estourados, ela aparecia. A primeira parte do plano era encontrar algum conhecido e acompanhá-lo até uma das intermináveis filas — desviando do labirinto formado por barracas e esbarrando em outras pessoas. A fila indiana com mais de mil pessoas, em marcha lentíssima, era enfrentada com alegria e fidelidade. A construção cinza, apelidada de ‘Albertão’, ganhava vida. A etapa mais tranquila do plano.
A segunda parte era enfrentar o enorme segurança e passar, como um raio, por baixo da catraca. Se conseguisse, ótimo, se não, o jeito era esperar os dez últimos minutos do jogo — quando os portões eram arreganhados —: a famosa ‘hora dos miseráveis’. Mas eu sempre conseguia; magro, passava bem mais rápido que um raio, para não haver tumulto. Toda a algazarra lá fora era subitamente abafada, quando se atravessava a portinhola verde. O som abafado do inicio era substituído por barulhos indefinidos, vindo de todo os lados. Por dentro, o monstro cinza era um enorme corredor cheio de eco, onde — principalmente de cima, sobre nossas cabeças — milhares de pessoas pulavam e gritavam. Enquanto lá fora era uma lentidão quase-sem-fim, lá dentro era uma correria para subir os degraus que davam acesso à arquibancada geral. Não lembro quantas vezes essa cena se repetiu, mas foi a quantidade de vezes que torci pelo flamengo.
A primeira visão do campo era espetacular; pessoas caminhando, correndo, para lá e para cá, pisando naquela grama verde-limão, iluminadas pelas quatro torres de iluminação. A visão era hipnotizante, mas, para conseguir uma vaga desocupada, uma garantia de que as pernas não vão doer, era preciso esquecê-la e concluir o objetivo — você conseguia sentar, mas para não sofrer com o cimento, desconfortável, que deixava a bunda dormente, era aconselhável levar uma boa almofada. Eu não levava, mas nem precisava, o meu lugar era encostado na grade de proteção que separava o público do campo — onde, em 1973, no jogo de inauguração da primeira etapa do estádio, houve uma tragédia: 30.000 pessoas lotavam as arquibancadas, quando um avião sobrevoou bem próximo ao placar. A estrutura vibrou, causando tumulto, pois alguém gritou que o estádio estava desmoronando. Oito pessoas morreram e várias ficaram feridas após a queda de três metros, no fosso, depois de a grade ceder —, onde uma gigantesca cobra multicolorida ficava dobrada, quietinha, esperando o primeiro gol; quando ele saía, os mais fieis desciam com tudo, agarravam-na pelas bordas, corriam esticando-a até a parte mais alta da arquibancada, cobrindo todos que estivessem pela frente e esbarrando nos vendedores desavisados — uma imponente bandeira flamenguista. Mas antes disso, bem no inicio do jogo, o espetáculo ficava por conta dos foguetes: um espetáculo de dois minutos, motivo de disputa entre crianças — que recolhiam as bases para transformá-las em espadas de papelão.
Com os jogadores em campo, começavam os palavrões, os gritos de incentivo, as provocações entre torcidas, os xingamentos contra o juiz e a mãe dele, que duravam do inicio ao fim — quando soava o apito final. Mas antes do apito final, caras novas apareciam nas arquibancadas; além dos miseráveis, os barraqueiros também corriam para terminar de vender as mercadorias — gente saindo, geralmente os torcedores do time que estava perdendo, e gente entrando. Não existia pressa na hora de descer a escadaria e atravessar o largo portão da saída. Uma confusão de gente, para todos os lados. As lâmpadas das torres só apagavam quando a avenida ficava vazia — não sei se propositalmente —, quando o cortejo se dissipava, carros, motos e pessoas, deixando para trás os flanelinhas com os bolsos cheios de moedas.
Após toda essa aventura, o único medo era o de voltar para casa; saber que uma surra estava à sua espera não era muito animador. A vida seguia. Ainda hoje continuo sem time, e sem lembrar da última vez que repeti essa façanha.