Animais Infláveis
O problema foi a bebedeira de ontem. “Com certeza”, disse para si mesmo. Por isso essa dor latejante nas têmporas. Demorou quinze minutos para se orientar, esperar o teto parar de girar; tanto tempo só para sentar no miserável colchonete. Sem se virar, tateou o chão até encontrar a pilha de roupas — imundas. Achou, dentro de algum bolso, o vidrinho de remédio contra dor de cabeça. Desenroscou a tampa e, com os dentes, arrancou o conta gotas. Despejou tudo de uma vez. Direto na boca. Gosto amargo. Careta. Cuspideira. Levantou-se. Dor nas têmporas. Sede. Muita sede. Usava um calção vermelho e estava sem camisa. Deu dois passos e quase caiu, quando o pé esquerdo encontrou a garrafa de vinho. Ainda tinha um pouco; três dedos. Mais dois passos, outra garrafa — completamente vazia. “Porra!, alguém vai ter que limpar essa bagunça”, disse e sorriu. Dentes branquíssimos.
Abriu a porta para ver melhor o relógio pendurado na parede; o quarto ficou totalmente iluminado. Oito e meia. Da porta, encarou a bicicleta enferrujada, encostada no muro — a garupa estava coberta por uma lona amarela. A lona cobria algo grande e largo, dava para perceber pelo o volume. Voltou e, da pilha de roupas, puxou uma calça branca, azulada em alguns pontos, e a vestiu. Pegou uma camisa branca e a pendurou no ombro direito. A mobília do cubículo era pobre; uma pequena mesa de plástico, pedaços de madeira encostados num canto — o que sobrou da cama — e uma cadeira, também de plástico — com o encosto amassado. E o não menos importante colchonete. Isso era tudo. Em cima da mesa estavam; um relógio de pulso, algumas cédulas e moedas espalhadas, um aparelho de barbear, um pente, uma revista pornográfica e um ventilador desligado — sem a grade da frente. Santo remédio, a dor já estava passando. Só o enjôo persistia. Pensou em tomar banho. Tremeu de frio, apesar do sol brilhando lá fora. Ia trabalhar. Já estava no ponto. Abotoou o relógio no pulso direito, jogou as cédulas no bolso traseiro e encarou o rosto no espelho; redondo, a barba por fazer, o nariz adunco, os olhos negros. O problema era o cabelo; estava mais branco do que de costume. E a cratera bem no meio — herança do pai.
Girou a chave na fechadura. Mais um dia de trabalho. Sem nenhuma emoção, ou cerimônia, retirou a lona e a jogou no chão. Na garupa; cachorros, macacos, onças, gatos, um golfinho e três sapos disputavam o espaço da pequena caixa de madeira — que transbordara, obrigando-o a amarrar o excesso com barbante. Coçaria a cabeça, mas não queria desarrumar o penteado. Algo estava errado. Faltando. Não lembrava o que era. Verificou se o barbante estava bem amarrado. Estava. Não tinha tempo para verificar a bicharada; só aquele colorido já o deixava enjoado. Não suportava ouvir o barulhinho chato que eles faziam. Saiu para rua. A rua era de pedra e ele empurrava a bicicleta, até chegar à avenida — para não furar os pneus. Chegando à avenida era só dobrar para a esquerda e seguir direto. Não tinha erro. O transito estava intenso. Vestiu a camisa, montou na magrela e saiu pedalando. Não demorou cinco minutos e já estava no sinal. As atividades já haviam começado.
Na beira da calçada estava um grupo de pessoas; crianças, idosos, homens, mulheres, doze ao todo. “Hoje vai ser um dia daqueles”, pensou. Sem perder tempo, pegou dois, dos três sapos, o golfinho e… “— Cadê a porra da baleia?”. Nesse momento o sinal fechou. Correria. Pouco espaço para muita gente na faixa de pedestres. Quase perdeu o momento; o primeiro malabarista, que não passava de um pivete de dez anos, jogava três pedras para o alto; o equilibrista, um senhor magro, já estava com sua parafernália — uma estrutura de madeira, onde eram pendurados controles para TV, capas protetoras de direção, ursos de pelúcia, isqueiro, carteira de cigarros… —, que parecia uma vara de pescar, cheia de iscas, passava entre os carros; o segundo malabarista — um rapaz de 16 anos, boa pinta, que também ganhava por fazer serviços extras; um michê disfarçado —, ao contrário do pivete, tinha malabares profissionais; os vendedores de guloseimas — saquinhos com castanha, pequi, cajá, maçã, jaca —, três crianças, dois meninos e uma menina, apostavam pra ver quem conseguia vender mais; os lavadores, dois, com baldes e rodos, limpavam pára-brisas; dois tipos de equilibristas — um rapaz equilibrava uma cadeira no queixo e um irmão levava o outro nos ombros; uma mulher passeava de carro em carro, com um bebê no colo, e por fim o vendedor de animais infláveis — lutando para achar uma brecha. Rapidez era a palavra chave.
Enquanto os que passeavam pelos carros recolhiam o dinheiro, os que se apresentavam na faixa acabavam não ganhando muito; pois tinham que usar dez segundos para a apresentação e o restante para chegar perto de um carro sem pedinte ou vendedor. Vez ou outro começava uma discussão, quando os trabalhadores do semáforo ao lado não gostavam do movimento intenso dos vizinhos. O vendedor de animais infláveis era um dos sortudos que ganhavam mais. Era nessa hora que ele escondia a raiva do barulhinho, e apertava os animaizinhos com o maior gosto — as crianças choravam para segura-los. Os pais acabavam comprando. Criança feliz, vendedor feliz. Essa cena se repetia várias vezes até as cinco da tarde, quando o expediente terminava. Isso quando corria tudo bem. ”Hoje vai ser um daqueles dias”. E foi. Mexeu com um, mexeu com todos. Era o que falavam. O que aconteceu foi que um dos limpadores de pára-brisas molhou o terno caro de um homem — que saiu do carro e revidou, despejando o resto de água do balde no menino. O outro limpador passou a atacá-lo com o rodo, batendo onde conseguia alcançar. O malabarista amador arremessou uma das pedras, quebrando o vidro traseiro. O restante já estava indo para a confusão, mas um tiro foi ouvido. O homem estava de arma em punho, apontando-a para o céu. Ficou alguns segundos na mesma posição, petrificado. Três sons cortaram o silencio; algo se quebrando, tiro e baque seco. Todos correram. O malabarista havia acertada a segunda pedra bem na nuca do homem, que caiu desfalecido. O vendedor de animais infláveis, que estava abaixado, não entendeu muito bem quando viu que todos recolhiam as coisas e corriam; soltou os três cachorros que segurava e também correu, montou na bicicleta e saiu. Não demorou muito e já estava longe do sinal. 3:25. Fim do expediente. Começo das férias; não voltaria tão cedo para aquele local. Talvez perdesse a vaga. Procuraria outro sinal, por via das dúvidas.
Resolveu passar no mercado; remédio contra dor de cabeça, três pacotes de suco, biscoito, sardinha enlatada, farinha, cinco pacotes de fumo.
— Só isso? — perguntou o moço do caixa.
— Só.
— Oito e setenta e cinco…
— Que dia é hoje? – pagando com uma nota de dez reais.
— Sábado… — disse, conferindo se a nota era verdadeira.
— O numero… — ensacando as compras.
— Treze de abril de dois mil e doze — falou tudo, já imaginando que a próxima pergunta seria sobre o ano.
— Rapaz, eu nem lembrava… Hoje é meu aniversário!
— Parabéns…
— Vou levar duas… Três! Três garrafas de vinho.
— Qual vinho?
— O mais barato!
Saiu feliz da vida. Colocou as compras na caixa de madeira. Lembrou do prejuízo. Três animais deixados no meio da rua. Foi direto para casa. Jogou a sacola dos alimentos no canto, e colocou as garrafas em cima da mesa. Pegou uma delas, destruiu a rolha com a ponta de uma tesoura e despejou o liquido vermelho. Direto na boca. Um belo gole. Gosto amargo. Satisfação. A camisa estava grudada no corpo, de tanto suor. Apertou um dos botões que ficavam na base do ventilador. Sentou no colchonete. Garrafa na mão. O ventilador não funcionou. Esqueceu-se de girar as hélices. Pegou impulso. Girou. Funcionou. O avião estava pronto para decolar. Tirou a camisa. O ventou rapidamente chegou até seu corpo encharcado. Mais um aniversário. Nem lembrava quantos anos estava completando. Seria uma festa discreta. Assim como a de ontem. A de anteontem. A da semana passada. Começou um assobio. Depois cantou.
— Muita mutreta pra levar a situação, que a gente vai levando de teimoso, de pirraça, que a gente vai tomando, que também sem a cachaça ninguém segura esse rojão…
Sorriu. Dentes branquíssimos.