Progressão continuada e tanto mais...

"Pode-se dizer, grosso modo, que a seriação como forma de organização do ensino adotada na maioria dos sistemas educacionais no mundo respondeu às concepções que entendiam a escola como representante do saber, sendo sua principal função a transmissão do conhecimento e a seleção anual dos “bem sucedidos”, para continuarem os estudos. Os conteúdos organizados em séries deveriam ser aprendidos durante o ano letivo. Aqueles que conseguiam, segundo a avaliação da escola, eram promovidos para a série seguinte, os demais repetiam a mesma série. Como os conteúdos escolhidos, as metodologias adotadas e o processo de avaliação quase não são modificados, quase sempre acontece a repetência recorrente e consequente evasão escolar". (JACOMINI, 2004, p. 404)

Todo o complexo contexto que envolve o conceito de Progressão continuada exige estudos aprofundados e reflexões amadurecidas em práticas. Para tentar refletir um pouco sobre o tema, tomo como norte esta citação de Márcia Jacomini e pretendo desenvolver um texto mais próximo da crônica ou do depoimento, mas que observará dois importantes aspectos: o passado e o presente.

Penso que esta citação e este parágrafo introdutório estejam um tanto formais. Então, prometo ao leitor: daqui em diante buscarei a simplicidade da narrativa.

O que vi durante os anos da escola primária, do curso ginasial e do curso superior em Letras foi, invariavelmente a mesma coisa, no sentido de que a escola foi criada para gente normal, completa física e mentalmente, inteligente, disciplinada e bonita. Alunos feios também eram excluídos e não apenas os que tinham deficiências como hoje classificadas. Deficiente também era o aluno cuja família fosse pobre, humilde e esse monte de bobagens que foi evoluindo até chamarem os alunos de carentes.

Na década de 60 (principalmente), escolas, livros e todo o material didático, conhecimentos e homenagens em festividades escolares eram coisas para poucos. Aliás, muita gente conheci que dizia a escola não ser destinada a pobres, pois pobres teriam que trabalhar, fosse na lavoura ou como empregados mal assalariados.

Rapazes de boa referência (sobrenome tradicional, famílias ricas), estes sim, seriam médicos, advogados, governadores, prefeitos (esses da classe política eram geralmente de famílias a vida inteira produtoras de herdeiros destinados aos palácios). Quando casados, coisa alguma que fizessem lhes atingiria, pois, como era de voz corrente: “em homem nada pega”.

As moças de fino trato, por sua vez, tinham que aprender corte e costura para cerzir ou para recolocar os botões da camisa do marido e senhor, mesmo que esses botões desaparecessem nas farras em casas noturnas; bordado (para bordar o enxoval do casamento). Precisavam também ser boas na direção do lar, na criação dos filhos e mais, aprender na Igreja como se deve respeitar o marido e cuidar da educação dos filhos. As moças pobres seriam as que as auxiliariam nesses afazeres. As moças pobres também serviam para atender às taras de muitos rapazes de boa procedência.

Quanto à realidade da escola, havia a diversidade de castigos para os insubordinados, esses castigos alcançavam a suspensão e, na reincidência, a expulsão. Aluno bom era aquele que só tirava nota boa, de preferência tudo dez. Tinha que ser disciplinado, obediente e ter cara de atoleimado. Não seria suportável um aluno nesse perfil ser reprovado e tudo era rigorosamente providenciado para que ele não tivesse a menor chance de repetir a série. Lá estariam os amigos e parentes dizendo com a boca cheia: menino burro!

Enquanto isto, tudo era feito para destruir os sonhos dos alunos desconhecidos da nata, isto é, da alta sociedade, aqueles jovens sem eira nem beira, poeirentos, sem os devidos objetos escolares. Esses eram vítimas de todo tipo de ironia, desde os apelidos até as mais perversas demonstrações de desprezo. Os poucos que chegavam às salas de aula eram, por exemplo, filhos de mães solteiras e lavadeiras de ganho e de pedreiros. Ficavam aquelas humilhadas criaturas geralmente esquecidas no fundo da sala e o professor as ignorava totalmente, pois tinha que se dedicar aos fidalgos cujos pais lhe cobrariam resultados. Se os resultados não fossem positivos em favor desses alunos, seriam negativos para o docente.

Enfim e para abreviar, criaturas perfeitas eram os alunos das meninas dos olhos da educação, orgulho da família, da cidade, do estado, da Nação. Em festividades de gala como os desfiles do dia 7 de Setembro, lá estavam eles perfeitamente vestidos e escovados, de nariz empinado e na cabeça um pensamento: tudo isto aqui é meu, do meu pai, da minha família.

Desde aquela época, sem que alguém me explicasse sobre tal situação, eu me sentia constrangida em ter o livro e ver que algum colega não tinha, que eu tinha sapatos bonitos, farda em tecido de qualidade, meias, abotoaduras e notas boas enquanto outro apenas olhava com olhos de tristeza e dor. Aquilo me fazia mal. Também não me sentia feliz em ver meu nome nas listas de aprovação enquanto os de outros não estavam lá. Eu queria entender aquilo, queria entender que funcionamento do mundo era aquele. Não faltou quem me dissesse para não dedicar atenção àqueles colegas, pois eles não prestavam e não seriam boas companhias. Quando vi isto, eu nem sabia e nem dava a mínima para coisas como socialismo ou comunismo. Também a palavra capitalismo não me era íntima e talvez até a confundisse com capital de um estado.

Entretanto, no Curso Clássico, eu conheci a Filosofia, os filósofos e a democracia. Vivas, então era algo assim bonito que eu queria, que achava justo e bom. Então, penso que comecei a compreender aquelas ocorrências do passado e fiquei profundamente revoltada. Até quando me graduei em Letras, continuei vendo a injustiça social e eu fazendo parte dela. Basta dizer que a minha turma tinha dez alunos. Dez, eu disse dez. Sabem o motivo? Porque escola era para privilegiados. Sempre gostei de escola, mas aquela situação eu detestava com todas as minhas forças.

Com isto e mais tanto que levaria muito tempo e texto narrando, digo que, de forma comprometida e responsável, em um ambiente escolar no qual haja respeito ao trabalho e à competência do professor, a progressão continuada e a mudança radical do sistema avaliativo poderão findar com o sofrimento de tantas crianças e jovens que preferem evadir-se da escola porque a escola os massacra e expulsa para áreas periféricas como as do emprego informal, dos programas sociais paliativos que tentam aliviar as consciências daqueles que fizeram do país uma nação de miseráveis.

REFERÊNCIAS

JACOMINI, Márcia A. A escola e os educadores em tempo de ciclos e de progressão continuada: uma análise das experiências no Estado de São Paulo. Disponível em <http://www.scielo.br/pdf/ep/v30n3/a02v30n3.pdf>. Acesso em 09 de abril de 2013.