"Ontem jogamos tanta conversa fora que o vizinho reclamou
que tinha caído conversa na sua prosa!"
(Alessandra de Paula Silva)
que tinha caído conversa na sua prosa!"
(Alessandra de Paula Silva)
Numa quente manhã de domingo, a caminho do clube, vislumbro uma cena pitoresca a poucos metros da pista: um carro estacionado com o porta-malas aberto e o som ligado. Ao seu lado, feliz da vida sob o sol escaldante, um sujeito tocava bateria (completinha: pratos, bumbo, surdo, caixa e pedais!), acompanhando a música.
Veio-me a lembrança de quando eu estava de licença do trabalho e passava os dias recostada numa rede, na varanda, estudando. No prédio ao lado, alguém aprendia a tocar clarineta e ficava toda a tarde em trinados desafinados. Não me incomodava. Cercava-me, com fones de ouvido, de boa música instrumental. Um dia, uma voz estridente invadiu minha redoma:
- Vai aprender a tocar essa porcaria no inferno!
Depois, confirmei: o rapaz que vi exercitando sua musicalidade no meio de um gramado sob o sol era vítima de igual incompreensão em sua vizinhança.
Vida em apartamento é mesmo assim. Amizades de décadas ou incompreensões que podem chegar às raias da loucura.
Já tive vizinhos que pareciam passar a noite sapateando, reformando o imóvel ou arrastando móveis. Ou, ainda pior, brigando, com direito a quebra-quebra e impropérios megafônicos de acordar o velhinho meio surdo do 601.
Fora as indiscrições das descargas sanitárias acionadas de madrugada, odores partilhados pelas janelas ou até algum voyeurismo auditivo, que, se por um lado, pode apimentar as nossas próprias relações, por outro, intimida: afinal, o que se ouve também pode ser ouvido.
Certa noite, eu e o marido escutamos um som muito característico vindo de algum lugar acima de nós. Excitante, já íamos nos empolgando, quando toca o telefone:
- Oi! Sou sua vizinha do 204. Tá ouvindo esse barulho?
Confirmo constrangida como se me pegassem olhando pelo buraco da fechadura. Ela prossegue:
- Parece ventilador de teto. Será que está batendo em alguma coisa?
Não pude evitar:
- Acho que está é apanhando, pois não para de gemer...
- Uh!
Somos seres sociais, mas não precisava tanto. Com paredes cada vez mais finas em prédios cada vez mais juntos, só mesmo com muito bom humor pra conseguir amar o próximo.
Texto publicado no jornal Alô Brasília em 01/03/2013, e reeditado do texto homônimo, publicado neste Recanto em 20/05/2008.