A PROPINA E OS GUARDAS

Eu sempre fui contra a maldita propina, por duas razões básicas. Considero não ser ético dar e receber suborno, e por outro lado, meu comportamento de pão-durismo impede que meu patrimônio seja dilapidado sem uma razão sublime ou diabólica.

A propina, segundo algum autor - entendido e doutor na coisa - é aquela prática de prometer, oferecer ou pagar a uma autoridade, governante, funcionário público ou profissional da iniciativa privada qualquer quantidade de dinheiro ou quaisquer outros favores (desde uma garrafa de bebida, jóias, propriedades ou até motéis, hotéis, garotas de programa, avião em viagem de férias) para que a pessoa em questão deixe de se portar eticamente com seus deveres profissionais.

Cansativa, mas a viagem transcorria calmamente.

Era próximo das quatro da madrugada quando eu, minha mulher com meu fuscão Fafá de Belém, ao cruzar a rodovia do café, em Ponta Grossa, com destino a Palmeiras, ouvimos dois silvos breves.

A madrugada era parcamente iluminada por uma lua vadia, bêbada, perdida no céu entre nuvens, que se apressava despencar no horizonte.

Como bom motorista que sou, parei de imediato, e na solidão da estrada divisei um carro e dois indivíduos fardados.

O silêncio era sepulcral, respeitado até pela coruja que dormia em algum pau de cerca por ali.

Esperei tranquilamente na certeza de que tudo estava em ordem; Esperei pacientemente até que um deles se aproximou com uma lanterna na mão. Meteu o facho de luz na minha cara, da de minha esposa e iluminou em seguida o banco traseiro.

- "Seus documentos e a do carro", interpelou o guarda.

Olhou os documentos, iluminou todo o carro na ânsia talvez por descobrir alguma coisa em desacordo. O carro era novo e a documentação religiosamente em dia.

- O senhor cometeu uma infração! disse o guarda em tom grave, quase cinematográfico.

Meio confuso, por segundos fiquei tentando imaginar que tipo de infração eu cometi. Parei imediatamente ao sinal do apito; Não ultrapassei em lugar proibido até porque era uma reta, e nenhuma alma viva motorizada estava transitando por aquele ermo lugar, e arrisquei a pergunta.

- Mas que tipo de infração eu realizei, seu guarda?

- O senhor cruzou a rodovia sem ter parado para olhar, colocando em risco a vida de sua família.

Naquele tempo era só eu e minha mulher, meus filhos ainda dormiam a sono solto, confortavelmente nos grãos do meu saco. Com tal informação, um tanto incrédulo e abismado, desci do carro para examinar a tal imprudência que cometi.

De fato tinha cruzado a rodovia do café, mas durante aqueles minutos entre cruzar, parar e atender os policiais ninguém passou por ali a não ser uma ave agourenta, em vôo raso piando estridentemente.

Fiquei indignado com aquilo, visto que havia uma visão ampla, aproximadamente cinqüenta metros, até chegar ao cruzamento da Rodovia do Café, e eu a cruzei em velocidade baixa, uma vez que doutro lado, o trecho de Ponta Grossa até Palmeiras não era asfaltada.

Tentei argumentar, mas em vão.

Chamou-me mais para perto dele como se quisesse segredar alguma coisa longe de minha esposa.

- A sua carteira está limpa, não é mesmo? querendo de mim uma confirmação, e continuou.

- Com esta multa você vai sujar sua carteira! Continuou ele, neste papo aranha, querendo sabe lá deus o que. Finalmente entendi o que o safado estava pretendendo. Estava querendo extorquir o meu sagrado dinheiro com a maldita propina.

Ele argumentou por A mais B a importância de se ter a carteira imaculada, e para isto ele queria uma compensação financeira para, com muito sacrifício, livrar a minha pura e virgem carteira da sujeira que a lei imporia. Minha carteira seria desvirginada, e ele, todo poderoso, com a poção milagrosa do dinheiro reverteria o processo.

- Nada mais justo, pensei eu.

Mas o amor ao meu patrimônio falou mais alto.

Peguei, com certa dor, o dinheiro no bolso de minha jaqueta, e a entreguei ao guarda. A nota de um cruzeiro estava enroladinha como de costume eu tinha em fazer para estas notas de pequeno valor.

- É a única coisa que tenho! disse, temeroso, a ele.

Ele a pegou, e sem olhar colocou rapidamente no bolso, entregou minha carteira ainda virgem, eu agradeci e saí rápido para o carro.

- E daí, o que aconteceu? perguntou minha esposa.

- Quatro horas da madrugada, estes caras ficam nestes lugares ermos querendo arrancar dinheiro dos motoristas otários, respondi a ela.

- E o que você fez? ansiosa questionou-me.

- Dei a ele um cruzeiro!

- E ele aceitou?

- Ele não viu, pegou rápido e enfiou no bolso devolvendo os documentos.

- Você está louco? aflita interpelou-me. E continuou.

- E quando ele pegar o dinheiro para repartir com o companheiro?

A pergunta dela fulminou-me como um raio e perdeu-se no espaço. Veio em mim uma louca vontade em virar um vaga-lume para presenciar a cena dos guardas tentando repartir o dinheiro arrecadado.

Quando liguei o carro, olhando para o retrovisor vi o sinalizador giroflex ligado e o carro da policia se aproximando.

Pisei fundo no acelerador e o fuscão respondeu a contento deixando uma nuvem de pó para trás.

A perseguição não demorou muito, uma vez que tinha cruzado a divisa dos municípios de Ponta Grossa e Palmeiras.

Mais adiante parei para trocar as cuecas e já de volta no carro pensei alto, num sorriso de satisfação:

- Fico imaginando a briga dos dois homens da lei querendo dividir a propina que dei.

- "Se eu pegar este cara eu mato"! com certeza está dizendo o que pegou a propina.

- "Ou você é um otário ou está escondendo de mim o que realmente recebeu"!, deve estar dizendo, possesso e desconfiado, o outro.

Mais de quarenta anos se passaram e ainda hoje tenho medo de cruzar com estes homens da lei. Se não se mataram naquele dia, devem ter arquitetando mil planos para me encontrar e esfolar o meu esqueleto.

Mario dos Santos Lima
Enviado por Mario dos Santos Lima em 08/04/2013
Código do texto: T4230760
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