PELA RUA SEM SAÍDA...

Naquela minha manhã algo improvisada e de endereço meio incerto, bem por acaso ali eu me vi aprisionada e mal conseguia manobrar os pneus do meu automóvel que ingriparam no meio fio diante dum retorno a um destino mais conhecido.

Se eu acelerasse pelo meu erro para retornar por aquela direção de tangenciamento da calçada, um planejado cenário a céu aberto seria triturado sob as minhas quatro rodas.

Nao era algo comum de se ver e ali eu ainda tive tempo de observar o todo para cautelosamente manobrar o meu destino.

"Que raios seria aquilo na calçada de terra?"-pensei.

Inacreditavelmente, um enorme sofá de cor marrom parecia ter sido ali abandonado sobre a calçada junto com todo o lixo espalhado, como um paredão imensurável que impedia que o meu trânsito fluísse normalmente pela rua.

Imaginei por frações de segundos quem o teria colocado tão estrategicamente ali, dada a sua enorme dimensão para ser despejado em plena margem duma rua sem saída.

De repente, notei que o cenário não era o de... apenas um sofá. O palco tinha vida.

Da sua intimidade vi sair um coelho branco saltitante , sujo de lama, e dois vira-latas algo sofridos, magricelos, mas que pareciam felizes...simplesmente porque ali gozavam da liberdade do instinto de ao menos existir.

Logo atrás deles, quatro crianças "pequeninas em escada cronológica de vida " sairam da tenda armada atrás do sofá, a puxarem a saia da mãe que trazia mais alguém dentro do seu ventre, alguém prestes a pular para fora da barriga, todavia, para dentro da tão triste realidade daquele relento.

Mastigavam algo que me pareceu pão endurecido e deixavam as migalhas rastrearem uma pista de desjejum tardio, disputadas pelas pombas.

Dependurada nas "paredes" do sofá uma pequena gaiola enferrujada de chuva ácida balançava o seu morador, a tamborilar sob o braço duma carroça de reciclagem um ritmo que variava com o soprar do vento, numa melancólica harmonia tênue do canto de um só passarinho, depenado e bem descolorido.

Aquela sinfonia perdida mais parecia um agonizante piar de fome.

De súbito, um homem franzino de barba ainda bem negra e comprida, que acabara de acordar para a mesma vida de sempre, bocejou ruidosamente olhando par o céu.

Manobrei a direção entre eles, com todo cuidado, pisei em ovos pelo terreno que margeava o asfalto e tomei um destino de meditação a lhes pedir desculpas pelas invasão daquele lar construído no alicerce dum sofá.

"Ô Moça, cê tem um real pra mim?" me gritou uma das crianças.

Fiquei triste ao perceber que nem a melhor das esmolas lhes mudaria aquele destino tão precocemente selado.

De fato, aquilo tudo não era apenas um sofá, e mais que isso, aquela rua era apenas uma a mais das tantas ruas sem saída por dentro das cidades...que sequer buscam por destinos mais promissores.

Por aqui, nunca houve tantas ruas sem saída...