Capítulo 06

Caio acordou indisposto, passara a noite acordando e dormindo, pescando um precioso sono que chegava e ia embora, como um marlim que não se deixa conquistar. Talita dava alguns gemidos ás vezes alto demais e ele tomava um susto. “você tá bem, querida?” perguntava e ela respondia com a cabeça que sim, que eram apenas cólicas, pois sua menstruação estava chegando. Caio não tinha como saber, a esposa desde que a conhecia, sempre teve ciclos irregulares, mas mesmo assim, suspeitava se essas cólicas eram da menstruação ou aquelas que ela vinha sentindo, de qualquer forma, abraçou carinhosamente a esposa e dormiram de conchinha, ela se sentiu melhor e as cólicas pararam.

Ele levantou e espreguiçou-se, fez a barba e depois arrumou o seu lado da cama, deu um beijo na esposa, ela tinha uma aparência cansada que roubava a beleza que as pessoas estavam acostumadas á ver em Talita, mas para Caio, estava apenas cansada, continuava linda.

Preparou o Nescau de Ani, fez a bisnaga com manteiga na chapa e só depois foi acordar a filha. Ela adorava ser acordada pelo pai, ele sempre fazia cafuné nos seus cabelos e dava um bocado de beijos em sua orelha, ela acordava com cócegas, morrendo de rir. Talita uma vez tentou acordar Ani do mesmo jeito, mas levou um grito de reprovação como resposta, “incrível, meu amor, só você pra fazer a Ani acordar de bom humor” disse ela, na mesma noite da tentativa frustrada. Caio achava que era da loção de barba que ela gostava, de qualquer forma, que bom que ela acordava de bom humor com ele.

Ani sentou-se a mesa e comeu as duas bisnaguinhas na chapa que o pai lhe fez, bebeu o leite achocolatado, deixando um restinho que ela sempre deixava. Ela aguardou um pouco até a preguiça de levantar-se ir embora, só depois pôs-se de pé, pediu licença ao pai e foi pegar sua mochila, era uma mochila da Magali, “aquela amiga da Mônica que come melancia pai!” disse a filha, que já falava bem aos quatro anos, na hora de escolher a mochila.

- Vamos? – perguntou Caio pra filha.

- Vamos! – respondeu ela satisfeita.

Eles se dirigiram á porta e Caio abriu para que a filha passasse primeiro.

- Ah, peraí! – disse ela alarmada – nem dei um beijo na mamãe. Ela foi correndo e voltou alguns segundos depois também correndo, afirmando que já podiam ir.

Marco já estava pronto, na entrada de seu prédio quando Caio chegou para apanhá-lo. Ele entrou no carro, ao lado do parceiro e cumprimentou-o, Ani ficou esperando no banco de trás que o tio lhe dirigisse a palavra, em vão, ele sempre fazia algum tipo de brincadeira com a afilhada.

- Oi tio “Maco”! – disse ela.

Ele não respondeu, postou-se a falar sobre matar umas pessoas que ele sabia nem existir.

- Eu seguro e você dá um tiro na cabeça dele! – disse Marco para Caio, esperando que ele entrasse na brincadeira. Ele queria assustar a garota, mas Ani já estava preparada e sabia que seu pai nunca machucaria ninguém

- Tio “Macoooo”! Você não falou comigo! – repetiu ela em voz alta.

- Caio, meu chapa, você tá ouvindo alguém falar? – disse Marco começando outra brincadeira.

- Não sei Marco, tem muitas mosquinhas loirinhas no meu carro. – respondeu entrando na onda do amigo.

- Ás vezes são fantasmas, mas eu tenho um remédio pra eles – disse Marco, tirando da jaqueta da polícia um saco de jujubas, daqueles que formam um bastonete.

- Eu quero tio! – disse a afilhada encantada com o que via.

- Nada disso, me deixe ver sua lição de casa, criaturinha.

- Pô Marco, você vai dar doce pra ela antes do almoço?! – disse Caio.

- Não fala palavrão na frente da minha afilhada, seu mau-educado. Disse Marco debochando do parceiro.

Ani abriu a mochila, tirou um caderno de desenhos e passou pro tio, orgulhosa.

- A tia pediu pra fazer um desenho da nossa família e eu te desenhei tio, junto com o papai e a mamãe!

Marco abriu o caderno de desenhos, com um monte de desenhos bem-feitos para uma criança de quatro anos.

- Olha aí parceiro, ela me desenhou mais forte – comentou ele mostrando o desenho para Caio, onde Marco parecia ter bíceps gigantes e Caio estava num corpo de palito como os outros dois: Ani e Talita. – Anizinha, está muito bom! Você já pensou em ser desenhista da polícia...

- Não dá idéias, Marco! Minha filha não vai trocar tiro com bandido por miséria. – cortou Caio.

A conversa no carro foi bem amigável, Ani como sempre pulava abraçando o pescoço do tio tentando enforcá-lo, ele fingia rendição e jurava comprar uma bicicleta motorizada e que voasse para que ela fosse até a Lua. Ani jurava que a Lua era de queijo,e ela adorava queijo, quando os avós os visitavam, ela passava a tarde com o avô que cortava queijo e salame e dava pra ela pequenos pedacinhos.

Ani ficou na escola, uma monitora veio até o carro com um guarda-chuva para protegê-la da garoa que começava a cair, cumprimentou os policiais e foi embora com Ani em direção á entrada do colégio.

- Tá certo, vamos tomar um café – sugeriu Caio.

Eles foram até o café preferido de Caio, desde os tempos de estágio e que depois veio á ser o café preferido de Marco também: o Regina`s, um café aconchegante, onde encontrava-se uma lareira ligada, pois o inverno estava começando e a neblina e o frio em pouco tempo chegariam. Tinha pequenas mesas circulares com dois e três lugares e mesas quadradas maiores, para seis pessoas, na manhã eles serviam café, pães, salgados e misto-quente. Caio pediu o de sempre: Frapuccino, bem gelado, com creme em cima e para comer, um risole de quatro queijos. Marco pediu um café expresso, do mais forte, com açúcar, nada dessas viadagens de adoçantes, dizia sempre para Antônia, a garçonete que vinha lhes atender e que atendia Caio e o delegado Jaime desde as primeiras semanas como estagiário, pra comer ele sempre pedia uma omelete de quatro ovos mexidos e queijo coalho assado.

Eles comeram e conversaram sobre assuntos triviais como o futebol para depois caírem no assunto do assassinato de Oscar Santos, o soldado que morrera na noite passada.

- Por que será que ele não se defendeu? – argumentou Marco – Se era um soldado, o mínimo que deveria ter feito é se protegido.

- O cara tinha uma faca – disse Caio.

- falou bem: uma faca! Por que um soldado não se defendeu de uma faca? Aonde esse exército vai parar? Pra me matar de facada, só o Chuck Norris. – eles riram.

- Olha a hora, estamos atrasados para ir pro IML. – disse Caio olhando para o relógio - Vamos!

Os dois pagaram a conta, Caio terminou de um só gole seu capuccino gelado e pagou a conta. Era sempre assim, cada dia um pagava a conta, facilitava o troco e era mais rápido. Eles foram em direção ao Vectra e entraram, o carro se dirigiu ao instituto médico legal, onde o médico legista que mandara uma mensagem ao bipe de Marco nesta manhã, anunciara que gostaria de falar com ele.

O IML ficava num prédio distante do centro, numa região de classe média, cheia de prédios e lojas de comércio. Em frente ao instituto havia uma floricultura: muito bem colocada estrategicamente alegava Marco: as pessoas vinham aqui reconhecer seus familiares e quando saíam iam logo comprar flores para colocar em seu caixão. “Nem na hora da morte há respeito hoje em dia, o negócio é ganhar dinheiro” comentou Marco na primeira vez que passaram pelo local.

No IML havia uma grande recepção, as paredes eram de azulejos e o chão de uma espécie de plástico que estava bem encerado. No balcão da recepção encontravam-se duas balconistas, uma negra gorda e a outra mulata clara, com olhos gigantes que pareciam que iam saltar da cara, aparentava ser mais nova e menos experiente que a gorda, as duas usavam óculos. A negra atendeu Caio.

- Pois não. – disse.

- Estamos aqui pra ver o doutor Klaus. – disse Caio.

- Ele está esperando os senhores?

- Sim, avise que os detetives.... – começava á dizer Caio quando ela o interrompeu.

- Ah, são os dois detetives que ele chamou. – disse apressadamente – podem entrar. Ela indicou com o dedo uma porta e eles entraram na porta dupla que se abria por sensor.

O corredor era mais sombrio, apesar de ser iluminado por fortes luzes brancas, mas algumas estavam com mau-contato e ficavam piscando. Havia várias portas com vidros que permitiam que se olhasse o que havia dentro. O corredor cheirava á éter e outras substâncias químicas difíceis de identificar. Eles encontraram o Dr. Klaus na última porta á direita e bateram à porta recebendo sinal para que entrassem.

A sala era do mesmo aspecto do corredor, uma luz branca forte dava um aspecto enjoativo e que se combinava com o cheiro e com vários cadáveres em cima de camas metálicas, com plaquetas numeradas presas aos dedões dos pés. Havia ao todo oito cadáveres nessa sala, o legista, Dr. Klaus examinava o último do canto da direita. Caio e Marco se dirigiram até ele e esticaram as mãos para cumprimenta-lo, o Dr. Klaus tirou a luva da mão direita e cumprimentou-os com um sorriso de papai Noel.

- Detetive Caio – Klaus apertou a mão do detetive. – Detetive Marco – disse em seguida apertando a mão do parceiro.

- O que você tem pra nós doutor? – disse Caio. Marco deu as costas e começou a analisar o ambiente, só dedique sua atenção á outra coisa depois que você estiver á par de todo o ambiente. BOE, pensou Marco.

Ele notou que das oito vítimas, apenas uma era mulher e havia duas crianças, aproximadamente de uns quatorze ou quinze anos, havia dois idosos e mais três adultos, sendo que um deles estava na frente do doutor Klaus e de Caio. Em cima de uma mesinha com rodas ficavam os instrumentos cirúrgicos como o bisturi, tesouras cirúrgicas, cotonetes, agulha com linha, etc... havia até uma furadeira, provavelmente para abrir um cérebro, como Marco via nos filmes.

O doutor Klaus mostrava para Caio alguns cortes que ele havia feito no cadáver, depois, mostrou as duas perfurações que o assassino havia aplicado no homem.

- Veja, primeiro ele aplicou uma facada aqui – mostrou o buraco no peito do cadáver – atingiu rasgando o diafragma. De qualquer forma, o homem não sobreviveria, não há como respirar naturalmente sem o diafragma. – explicou Klaus olhando por cima dos óculos.

Caio só escutava. Marco chegou ao seu lado para ouvir a explicação.

- Ele conseguiu atingir a aorta, como os senhores podem ver – Dr. Klaus abriu o corte que ele havia feito no peito de Oscar – o coração dele ficava no meio da caixa torácica.

- Peraí doutor. – interrompeu Marco - o coração não era pra ficar do lado esquerdo do peito?

- Isso é certo – confirmou o médico – se ele não fosse tão alto. O sujeito tem, ou tinha, quase dois metros de altura, isso faz com que o coração siga para a região mais central do corpo.

- Teria que ser médico para acertar num canto desses, doutor? – perguntou Caio.

- Não necessariamente – respondeu Klaus – pode ter sido um golpe de sorte, ou uma pessoa que tenha estudado coisas básicas como anatomia do ser humano. Posso continuar?

- Prossiga – disse Caio.

- Ele usou um objeto afiado... – continuou o doutor, mas fora interrompido novamente.

- Uma faca do de sobrevivência, como a do Rambo! – afirmou Marco – pula essa parte doutor.

Caio olhou com recriminação para Marco. O doutor Klaus sorriu e olhou para o detetive mais novo. Tirou os óculos calmamente e secou no jaleco sujo de sangue.

- De fato, uma faca de sobrevivência, como a do Rambo, você viu Rambo 3? É aquele do Afeganistão, não detetive Marco? – disse o médico maravilhado – mas uma faca dessas nem o Rambo tinha igual!

Os dois ficaram calados tentando entender a ironia do velho médico.

Ele levantou o queixo do cadáver e pediu para que Caio o segurasse. O detetive colocou uma luva descartável na mão esquerda e levantou a cabeça do cadáver com três dedos.

Havia um buraco imenso no queixo da vítima, causada pelo mesmo objeto cortante, o sangue escorrido estava lavado, na verdade, não havia marcas de sangue visíveis, o corpo todo havia sido lavado.

- A faca entrou no queixo do rapaz – começou Klaus com uma vareta metálica, enfiando no queixo do cadáver e seguindo pelo caminho que a faca percorreu – passou pelo queixo, atravessou o céu da boca, perfurou o crânio e atingiu o cérebro, destruindo a sua parte inferior, incluindo a hipófise..., mas isso não vem ao caso.

Os detetives estavam atônitos. Klaus conseguira o que queria: impressionar os dois detetives. Marco e Caio estavam calados, pensando na tamanha força que um homem teria que ter para conseguir enfiar uma faca até a base do cérebro.

- O homem precisa ser um monstro pra fazer uma faca chegar lá doutor. – começou Marco – e isso não bate com a descrição que temos do suspeito.

- Ou precisa estar com muita raiva – argumentou Caio –mas mesmo assim, eu nunca vi uma faca fazer isso.

- Ou... – começou o legista e esperou para que os dois detetives dessem atenção á sua descoberta – a ponta da faca poderia conter ósmio.

Os dois detetives pararam, tentando buscar em seu cérebro informações sobre a palavra incomum em seus vocabulários.

- Encontrei vestígios de ósmio na aorta e na base do cérebro da vítima – disse com orgulho, mas notou que o comentário não esboçara reação nenhuma nem em Caio e nem em Marco, na verdade, o legista estava falando grego com eles. Klaus lembrou-se de explicar sobre o ósmio e sentiu-se um idiota.

- Sabem aquelas canetas que vendem na televisão, que conseguem perfurar facilmente latas metálicas? – perguntou aos dois. Eles assentiram. – elas contêm ósmio na ponta, é o metal mais denso da natureza.

Agora para os dois tudo fazia sentido: se uma caneta com um metal super denso na ponta conseguia perfurar facilmente uma lata, imagine na ponta de uma faca de sobrevivência?! As perguntas começaram a formular na cabeça dos dois e as primeiras eram: quem faria uma faca com um poder de perfuração tão alto? Uma arma capaz de penetrar na carne como papel e perfurar um osso como se fosse isopor! Por que matariam um soldado e não roubariam o dinheiro? Caio estava convencido que o motivo era uma rixa antiga do homem, talvez uma briga de bar ou talvez Oscar Santos estivesse envolvido com a mulher de alguém. De fato, as pistas não eram boas, a perícia não achou nada que prestasse, Marco estava pensando na faca com a ponta de ósmio e Caio acabara de lembrar do: Selva, companheiro.

- Companheiro! – comentou baixinho para si mesmo e Marco o ouviu.

- O que tem? – perguntou ele.

- Por que uma pessoa, que vai matar outra chamaria sua vítima, um militar, de companheiro?

Marco entendeu o que seu amigo estava dizendo. Os dois agradeceram ao doutor pelos minutos prestados, Caio tirou a luva e jogou-a num lixinho com um símbolo de perigo biológico, depois, se retiraram. Passando pela recepção Marco acenou com a cabeça para a recepcionista mais jovem, ela abriu um amplo e feio sorriso.

- Não me diga que você pegaria aquela garota, cara?! – perguntou Caio quando eles já haviam saído do prédio, em direção ao Vectra verde escuro.

- Eu? – respondeu ele rindo – jamais!

- E por que você fez aquilo?

Marco olhou para o companheiro.

- Ah cara, só pra levantar a moral da garota! – respondeu ele como se tivesse feito a coisa mais nobre de sua vida – fiz minha boa ação do dia!

Os dois se dirigiam para o quartel do 45BPQD, o quadragésimo quinto batalhão de pára-quedistas, o quartel que indicava ser onde Oscar Santos servia, segundo sua carteira, antes de morrer.

Ace
Enviado por Ace em 23/03/2007
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