A morte mora ao lado

Se literalmente fosse cobrado ingresso para assistirmos a vida passando, teriam que pagar em dobro aqueles que moram perto do cemitério, pois veriam também a morte passar.

A vida e a morte são bipolares, encontram-se em pontos extremos daquilo que vivenciamos: logo que nascemos ganhamos um tapa, e por vezes o “tapa” é que nos leva a morrer. Ao nascermos inspiramos pela primeira vez, ao morrermos expiramos pela última vez; pode parecer tétrico, mas é sincronizado, quase que matemático.

Morava na última curva antes do cemitério, intrigado, a cada enterro, indagando se a última luz, ao final do túnel, não era a luminária de sua residência, afinal ela se situava na última curva antes da entrada do cemitério.

Por lá passaram eleitores, alguns crédulos ainda, passaram eleitos, com pouquíssimas realizações; passaram pescadores que contavam ter descoberto o soro da v ida eterna... viu passar amigos e inimigos.

O sino da igreja anunciava o cortejo, e da janela, sem necessidade de vestir luto, ele via passar alguém na vertical. No séquito ele já viu lindas viúvas, o dentista, ao qual devia a última parcela da última prótese que fizera; sua vizinha, que escutava músicas no último volume, mas que nunca dava o último suspiro e outros desconhecidos.

Com certeza os gregos já criaram um prefixo para amigo (filo) e um sufixo para morte, que dispensa aqui investigações mais profundas. O certo é que ele assumiu uma idolatria por enterros, assistia a todos, e cada vez mais de perto.

Desceu da moldura, que o emoldurava a cada enterro que assistia, até lembrando Carolina, do Chico Buarque, para fazer número entre aqueles que iam com o “de cujus” até o último porão

Acabou fazendo novas amizades, com velhas pessoas que acompanhavam os féretros e a cada novo féretro o “de cujus” havia acompanhado o anterior, como figurante.

Como os defuntos abusam da alta rotatividade, nunca se repetem; no morgue o lanche servido repetia-se sim. Independente da fortuna do morto, sempre serviam chá, café e uma bolachinha fabricada em Marília.

A vida pode nos proporcionar surpresas, a morte não; ele assistiu a tantos enterros e se viu privado do seu

Não...alguém que conhecia seus hábitos mandou que pusessem em seu esquife uma janelinha, e ele a que tantos enterros assistira, daquela janela, se pudesse, veria a todos que ao seu enterro assistiam.

Roberto Chaim
Enviado por Roberto Chaim em 05/04/2013
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