VAI NA PAIZ...
VAI NA PAIZ...
Crônica de: Carlos Freitas
Segunda - feira. Manhã de primavera. O insano despertador da cabeceira faz o seu escândalo rotineiro. Levanto-me e, vou para o banho. O box é invadido pelo triste canto de um sabiá ao longe. Mais cinco dias e, novos desafios. Na cozinha, minha esposa prepara algo rápido para o café. Sabe que os minutos são sincronizados. As crianças se arrumam para ir a escola. Beijos de bom dia e, saio a correr. Meu amigo está a buzinar na porta. Essa semana sou carona. Trânsito – o caótico de sempre. É o primeiro dia da semana, mas, pelas ruas o estresse se faz notar nos gestos e nas atitudes ríspidas. Chamo a isso de: SDC - “Sentimento de Desumanidade Condensado”, provocado pelo sedentarismo e suas complexidades, quais sejam: a intolerância, a arrogância, e a ausência absoluta de bom senso, na solução das minúsculas questões. Somos presas fáceis das invisíveis arapucas que nos espreitam.
Chegamos ao trabalho. Paramos no bar ao lado da empresa, para “aquele” sagrado cafézinho do boteco. Meu amigo folheia o caderno de esportes de um jornal qualquer. Atualiza-se, antes de chegar ao escritório, onde o futebol será o tema de praxe. Ergo a xícara e ouço atrás de mim uma voz infantil: - Ô tio, paga um lanche prá mim? –Viro-me. É um maltrapilho menino com no máximo oito anos. - Qual é o seu nome? – indago. – Jonatas – sim senhô tio. - Senta aqui. Vou pedir o lanche. – Quer um pingado também? – Na moral tio? – diz ele. – Na moral - replico. – Então é nóis – pede aí tio - diz ele.
Interrompo meu cafézinho instante depois e o papo sobre futebol com meu amigo, para observar a avidez com que aquele pequeno pária, devorava cada casca do pãozinho. Era como se tivesse à frente um suculento prato de macarronada. A cada mordida seus olhos brilhavam. Era um deleite. Conclui que estava há muito sem comer. E, assim, meditativo, fiquei por algum tempo. Satisfeito, e com a boca ainda suja, o garoto educadamente levantou-se, olhou-me bem nos olhos e disse: Deus te pague tio. Ofereci-lhe um guardanapo. - É nóis. - Quer saber tio? Você é dos meu – completou. Dizendo isso, nos tocamos com as mãos, seguido da clássica batida de punhos fechados. – Até mais garoto, e se cuida, falou? – Falô tio. No escritório, aquele rosto imberbe povoava meus pensamentos. Jamais o vira, ou, o notara por ali. Envolvido no trabalho, as horas voaram, e já era hora do almoço. No restaurante, de soslaio, fiz uma panorâmica ao derredor - Quem sabe Jonatas não estivesse por ali, e então, poderia oferecer-lhe um prato de comida? – Bobagem minha. - Sentimentos de compaixão? - Talvez! Almoço, e a tarde, trabalho e mais trabalho.
Por conta do volume de processos o turno esticou até as dez da noite. Agora era ir para casa e ser também um pouco pai, marido e, esperar pelo dia seguinte. Na calçada acendi um cigarro, enquanto esperava meu amigo que fora ao estacionamento. Uma baforada no ar e... Ouço uma ordem às minhas costas: - Não se vira tio. Tenho um “cano” apontado prá sua cabeça! - Di boa. Só quero o seu relógio, o celular e a grana. Imóvel, mais pelo medo que pela ordem, reconheci aquela voz.
Era do garoto que pedira o lanche pela manhã. Arrisquei: – Jonatas? – Péra aí mano, tá me tirano? - Como é que sabe o meu nome? – Você mesmo o disse quando lhe paguei o lanche pela manhã – lembra? - Disse que eu era um dos seus. E agora isso mano? Não obtive resposta. Enquanto falava girei lentamente nos calcanhares, até ficar de frente para o menino. Ao reconhecer-me, Jonatas abaixou a arma. Caminhou em minha direção. Nossos punhos se tocaram. Ele olhou prá mim, com ar de gratidão e disse: – Você continua sendo dos meu tio. Foi mal. Vai na Paiz. Di boa.
Ele foi embora sem olhar para trás. Restou-me a certeza, de que naquela tenra cabeça, já não havia mais espaço para sentimentos de arrependimento ou compaixão. Circunstancialmente, eu fora uma mera exceção.
Meu amigo já me esperava no meio fio. Embarquei. Contei-lhe o acontecido.
Naquele momento, tive a sensação que mãos invisíveis, me entregavam um novo passaporte.
Fechei os olhos, e, silenciosamente agradeci a Deus, a continuidade da vida, que acabara de me conceder!