Frases feitas em vidas desfeitas

“Foi um prazer lutar ao seu lado...” O soldado ouviu isso e estranhou porque a bomba ainda estouraria, mas dentro dela aquela era a explosão. Foi a primeira vez que sentiu a dor. E não era dos cortes que jorravam seu sangue ao chão do deserto, mas a dor da partida de seu companheiro. Não houve abraços, nem mesmo um sorriso. Só uma continência e então a dor. Embora ele estivesse no outro dia voltando para casa para sua esposa grávida , a alegria sumira, Houve também a estática e um silencio comprido e alguns minutos depois a explosão distante. Só ali conseguiu responder, atrasado de mais: “Foi um prazer...”

“Você ainda me ama?” Ela perguntou e o fez em alta voz. Olhou nos olhos do marido. Ele não respondeu. Ela ficou olhando para aquele poço profundo das pálpebras. Ela suportara suas crises traumáticas caladas. Ela criou o filho quase sozinha enquanto ele tentava se recuperar da desgraça da guerra. A guerra não lhe roubou a vida, mas matou o amor que havia entre eles. O filho já estava indo pra faculdade de medicina, já não havia mais para que mentir. Com o silencio mesmo ela se virou enquanto seu ex-marido continuava imerso nas cenas das batalhas travadas sem nem ao menos perceber as que a atormentava.

“Eu abortei...” Ela lhe contara no corredor lotado do hospital. Ele queria chorar e queria chutar alguma coisa mas não o fez. Ele era um médico renomado e não pudera fazer nada. Diferentemente do que passou na vida ele amaria aquela criança e estaria sempre presente, mas nada adiantava mais. Ele viu os olhos da sua esposa cheia de lágrimas à espera de consolo, mas ele não tinha. Ele só pegou a prancheta e encaminhou ao próximo quarto para mais uma noticia ruim. Deixou a esposa parada no corredor enquanto caminhava e pensava que ao menos seu filho não veria o quanto viver dói.

“É mesmo uma questão de escolha, Doutor?”. Foi essa a pergunta do recém-casado segurando as pontas pela noticia da cirurgia que lhe arrancaria uma perna. E ele nem ouviu a resposta. Enquanto via a cabeça do médico balançando negativamente ele só pensava em como segurar as pontas com sua recém-esposa-recém-gravida. Ele assinou os papeis para a cirurgia e ainda não tinha respostas.

“Vamos ficar bem... Você vai ficar bem”. Foi algo assim que o garotinho ouviu entre estrondos enquanto sua mãe o apertava contra o peito. Ele era pequeno, mas já não era tão inocente assim para acreditar. Talvez porque sua mãe chorava e tremia ou porque tiros estavam estourando mais perto e os gritos da moça se calaram junto com o ultimo estrondo. Aquilo não podia ser um bom sinal. É difícil acreditar quando se está deitado debaixo de uma cama escondendo da morte. Ele fechou os olhos fortes mas aquilo não o impediria de sentir o sangue que escorreria sobre ele e o marcaria para sempre.

“Você é um caso perdido!”. Aquilo martelava junto com o som do carro nos ouvidos dó rapaz onde seus amigos riam alto embriagados. Ele não conseguia rir, ele não pensava em nada, só em ser um caso perdido e um sonho frustrado. Um pai morto numa cirurgia de amputação por complicações, uma mãe morta por um atirador na sua frente e ele sobrevivera. Sobrevivera não pra ser símbolo de um milagre, somente para ser uma ironia, para ser o caso perdido. Ele não queria rir, só queria descontar sua raiva. Encheu a cara, fumou uma e saiu do carro pra aprontar pela noite algo realmente estúpido já que era um caso perdido. Nunca um milagre.

“Você é um lixo!! Você é um lixo!!” Era isso que ouvia o mendigo enquanto apanhava dos três adolescentes com roupa de marca. Aquilo não lhe doía, pra falar a verdade nem seus ferimentos e nem os socos que levava. Ele só ouvia aquela frase e se o rosto não estivesse tão inchado quando partiram deixando seu corpo ao chão tombado veríamos um sorriso. Antes de desmaiar ele pensava naquela frase. Finalmente alguém lhe deu uma resposta para a mais difícil questão que tinha em sua vida: quem era ele de verdade. Ali sentiu saudades de sua casa que não via à tempo. Fora jovem um dia e amara, mas a vida destrói as vezes e agora era só um velho morrendo na calçada. Segurou forte a foto de sua amada.

“Nós fizemos tudo o que podíamos, mas...” A senhora ouviu aquilo e não ouviu mais nada. A morte não lhe parecia caber. Fazia tantos anos que não tinha notícias do seu grande amor até descobrir que ele mendigava não muito longe de sua cidade. Recebera a noticia de que o encontraram e sorriu, recebeu a noticia de seu estado e chorou e na sala de espera tentou imaginar uma vida onde tiveram juntos uma vida longa e feliz juntos pensando que facilitaria a esperança, mas ao ouvir aquela metade da frase já não tinha cura alguma para a dor. Ainda eram jovens de mais para serem separados. Enquanto puseram a mão em seu ombro ela desabou a chorar. Ela caminhava para um quarto onde o corpo irreconhecível sem alma de seu amor a aguardava.