A Vela Esquecida

O dia amanhecera radioso. Havia sol. Um sol amarelo e transparente que se escoava como chuva de ouro por entre mimosos flocos de nuvens muito brancas. Talvez tenha sido assim, aquela manhã longínqua em que se dera o supremo milagre da Ressurreição de Cristo. Os sinos da Matriz bimbalhavam festivamente, chamando as pessoas à Santa Missa.

Naquele dia, acordei cedo. Uma suave emoção invadia o meu coração de criança. Estava feliz. Sentia o céu dentro de mim e desejava ver todos os que se me aproximavam, felizes como eu. Pela primeira vez, ia receber Jesus Hóstia e já contava os minutos que me conduziam àquele instante sublime.

Em casa, havia rebuliço. Quanto alvoroço! Enquanto minha tia vestia meus irmãos menores, minha mãe punha-me o vestido confeccionado para o grande dia, um bonito vestido que me caía aos pés. Confeccionado em “tulle” branco, era entremeado na saia por uma fita branca acetinada, terminando ao lado esquerdo, com um grande laço. No alto da cabeça, prendiam-se dois pequenos ramos de miosótis, deixando cair uma cascata de véus até quase à orla do vestido. E o buquê? Como era lindo! Em finíssimo organdi branco, um grande buquê de flores, de onde pendiam pequenos ramos de miosótis, em longos fitilhos. Bem no centro, a vela simbólica para testemunhar ao Divino Amigo, a minha profissão de fé.Tudo estava pronto. Ao ver-me vestida naquele traje, meu pai perguntou-me em tom de brincadeira:

_ Que é isso? Vai pro carnaval?

_ Não. Vou fazer minha primeira comunhão. _ Respondi, mostrando o vestido e os adereços que levava comigo e demonstrando que não havia gostado da brincadeira

Em companhia de minha tia, dirigi-me à Igreja irradiando pureza. Levava nas mãos o buquê de miosótis, um livrinho branco com letras douradas e um pequeno terço trabalhado em prata que ainda guardo com carinho.

A igreja estava repleta de gente que ostentava, com muito bom gosto, vistosas roupas domingueiras. Entrei pela porta principal sob o olhar curioso de meninos e meninas, indo ajoelhar-me em um genuflexório guarnecido por uma toalhinha de renda branca, frente ao altar-mor. O altar, ornamentado com muitas flores, recendia um delicado perfume, dando ao recinto uma nota de gala e alegria. A um lado, erguia-se o Círio Pascal; no outro, a majestosa imagem de Jesus Ressuscitado posta em um andor. A música vibrante entoada pelo coral ressoava em meu coração com toda a plenitude de uma bênção celeste, revigorando a minha fé: "Ressuscitou Nosso Senhor/ Glorioso, belo e forte/ Alelúia!" Senti-me feliz. Como gostaria de que as pessoas, que mais amava, estivessem compartilhando daquele meu momento de felicidade! Meu pai não era afeito às coisas da Igreja; minha mãe, bastante religiosa, não gostava de contrariá-lo, por isso muitas vezes deixava de comparecer aos atos litúrgicos, até mesmo em um momento como aquele que, acredito ser de grande interesse para qualquer mãe que ama os filhos. E eu sabia que minha mãe estava sofrendo. A submissão em que a mulher vivia naquela época, ainda era plausível na sociedade machista em que vivíamos. Tudo estava tão bonito, na Igreja! Tenho certeza de que iria se sentir muito feliz.

Outro motivo esmaeceu, um pouco, o brilho daquele momento. Vizinho a mim, um garoto também ocupava um genuflexório, esperando para fazer a primeira comunhão. Estava vestido de branco e tinha nas mãos uma vela enfeitada com um laço de fita amarela. Logo de início, não gostei porque sua cadeira estava muito perto da minha, tolhendo-me os movimentos. Para completar, numa das vezes em que a liturgia do ato religioso mandara ajoelhar, uma parte da barra da minha saia ficara presa ao pé da sua cadeira. Não tive coragem de pedir que se afastasse um pouco e continuei contrariada, pensando: _”Quando se levantar, puxo a minha saia!” Mas para meu transtorno, ele não se mexia, permanecia petrificado como se tudo aquilo fosse muito estranho para seu pouco conhecimento litúrgico ou emocionado pela grandiosidade transcendental do momento. Protegi-me com o escudo da compreensão, não sei, e voltei a ser feliz.

Durante a missa, permaneci imóvel, o coração aos pulos, aguardando o momento da comunhão. A catequista que me havia ensinado a doutrina estava presente, encorajando-me e lembrando-me das orações de preparação ao meu primeiro encontro com Jesus. Não sei o seu nome, chamávamos Dona Sinhá. Às primeiras palavras do “Agnus Dei”, veio silenciosa e, com muito cuidado, acendeu a vela que o garoto, ao meu lado, tinha nas mãos e, não sei por que razão, não acendeu a minha.

Comunguei. A chama da minha vela, que iria testemunhar minha profissão de fé, não brilhava alegremente! Um leve sopro de tristeza perpassou-me o coração que, até então, vibrara em aleluias, empanando, em parte, a minha felicidade, deixando-me uma interrogação para sempre.

Por trás, porém, desses pequenos obstáculos, resplandeceu em mim o sol da Eucaristia, escoando-se como chuva de ouro, em forma de bênçãos que têm iluminado a seqüência tortuosa dos meus dias.

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Maria de Jesus Fortaleza, 31/03/2013.

Maria de Jesus
Enviado por Maria de Jesus em 31/03/2013
Reeditado em 12/08/2015
Código do texto: T4216040
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