A Vida - Parte I

A vida é um palco, ou um picadeiro, onde nós temos de representar uma porção de personagens, quase sempre sem ter lido o enredo.

Quantas vezes o destino nos apresenta peças que nós, de improviso, temos de representar, e muito bem? Pois o nosso desempenho ali será fundamental para o nosso futuro.

Não apenas eu, mas acredito que todos que vivem neste mundo temos de caprichar para podermos ganhar nosso Oscar ou Molière.

E escrevendo estas linhas me recordei de um personagem folclórico chamado Paquinha que veio de Amparo para jogar futebol no time do Floresta F. C., de Campinas, mas que logo parou e ficou trabalhando no Curtume Cantúsio. Ele era muito humilde, educado e muito alegre. Às vezes no meio de um bate papo com os amigos ele dizia a seguinte frase “Tudo por Tudo. Onde há casualidade não pode haver comodidade”. Nunca entendi a frase, mas aceitava.

Depois de ter tido vários empregos como aprendiz gratuito onde os oficiais como sapateiro, barbeiro, alfaiate e de lavanderia, achavam que você esta ali de favor, um dia eu me enchi daquela situação de aprendiz de coisas que não despertavam meu interesse, e que era o costume da época quando os pais procuravam arrumar uma ocupação para os filhos, para poder ajudar no pagamento das contas do mês. Fui por conta própria procurar um emprego que fosse do meu agrado, onde eu me sentisse útil e fosse remunerado.

Desci a Rua 13 de Maio me oferecendo para trabalhar, menos nos casos das profissões que eu citei acima. Estávamos no fim do ano de 1945. Eu estudava no 5º Grupo Escolar onde tiraria meu diploma no final do ano. Só poderia trabalhar na parte da tarde, até o diploma chegar. Como eu já tivesse amigos trabalhando em lojas, talvez, também este fosse o meu futuro emprego.

Entrei numa loja de tecidos para todos os fins (tendo desde casimiras até chitas) e perguntei ao dono se ele precisava de alguém para trabalhar. Ele me disse que no momento não precisava, mas que o Senhor Coelho, do bar e café que ficava na esquina entre Saldanha Marinho e 13 de Maio estava precisando de um garoto para atender no seu estabelecimento.

Agradeci ao senhor da loja de tecidos e fui até o Bar e Café. Ali havia muito movimento visto ser Bar, Café, Sorveteria e ainda serviam-se refeições. Fiquei lá parado. Então, senti uma mão no meu ombro que me disse: “Você quer alguma coisa?”. E eu lhe respondi que queria um emprego. Mas ao me virar para ver com quem estava falando vi um senhor muito forte, a quem perguntei se era o dono do estabelecimento. Ele se virou e disse “Sou. por quê? Não parece?”, com um sotaque português, lá da Terra de Camões. “O que sabes fazer?”. Eu lhe respondi; “Nada. Mas tenho vontade de aprender”. Ele me disse: “Vá atrás daquela geladeira que tem um avental. Vista-o e vá até aquela pia que está cheia de copos e xicaras. Vejas se não quebras nada”.

E assim comecei a atuar como balconista. A primeira vista notei que eu e o senhor José Augusto Coelho iríamos ganhar alguma indicação, graças ao nosso entrosamento, para o Oscar. Felizes dias que não voltarão mais.

Mas como eu disse o senhor Coelho tivera até ali uma existência que daria para o enredo de um filme. Ele me contou um dia que vivera em Portugal até os 21 anos e, com o consentimento da família viera ao Brasil com a cara e a coragem, mas prometera aos seus familiares que um dia voltaria rico à Terra de Camões.

No navio para o Brasil, mesmo como passageiro, ele procurava ajudar a todos. Era pau para toda a obra. Ao chegar ao Rio de Janeiro, o capitão do navio ofereceu-lhe um lugar na tripulação. Ele agradeceu, mas não aceitou visto ter um parente distante morando em Santos. Procurou e encontrou esse parente que lhe arrumou um emprego nas docas do cais de Santos e foi morar numa pensão de lusitanos.

Nessa pensão, já cansado depois de um dia de trabalho ainda arranjava disposição para rachar a lenha que a pensão usaria no dia seguinte. E ele, com todo o seu vigor físico dos 22 anos, fazia tudo isso e ajudava até na cozinha. Mas um dia, um médico da Beneficência Portuguesa de Campinas convidou-o para trabalhar no hospital, e ele aceitou. Morava no hospital. A comida era boa e de graça. Ele estava feliz. À noite ajudava os enfermeiros no que fosse preciso, embora seu serviço na Beneficência fosse o de manter a caldeira de vapor em funcionamento, durante o dia. Ele fez um curso de enfermagem e segundo alguns médicos era, talvez, o melhor enfermeiro de Campinas, na época.

Mas o espírito aventureiro falou mais alto. Como era muito econômico foi guardando tudo o que podia. E muito em breve comprou um pequeno bar na Rua Barão de Parnaíba, que com a sua queda para os negócios e muita iniciativa, progrediu muito. Ele já estava se acostumando com a freguesia e a boa vida que levava. Pagava o aluguel do bar e o resto era lucro. Mas ele queria maiores desafios. Então comprou um bar na Rua Saldanha Marinho na esquina com a Rua 13 de Maio. Segundo me contou, havia emprestado algum dinheiro para dar de entrada no bar.

Quando eu fui trabalhar com ele, fazia três anos que estava estabelecido ali. Já havia se casado e com um filho. Então eu trabalhei com ele de fins de 1945 a junho de 1949. Sempre nos demos bem. Às vezes eu dava opiniões que ele aceitava, como em certa ocasião em que apareceu um vendedor de refrigerantes querendo empurrar a ele várias caixas de um refresco que ninguém conhecia e de procedência duvidosa. O senhor Coelho me chamou e quis saber minha opinião. Então, com grande personalidade dos meus 13 anos eu lhe falei: “Peça para o vendedor deixar apenas uma caixa. Se o refresco for bem aceito o senhor comprará mais”. Essa minha opinião foi baseada em quem poderia bater o Guaraná Cristal, da Columbia, e mesmo o Guaraná Champanhe, da Antárctica. E eu estava certo, pois não vendemos nenhum daquele refrigerante, que era um guaraná de nome Ideal, e nem me lembro de onde era fabricado.

Assim, eu e o senhor Coelho íamos vivendo um filme muito bom. Certo dia eu lhe falei que não poderia viver eternamente como balconista de bar, e que tinha pensamentos mais ousados. Ele como um pai me disse que eu estava certo, pois ele já andava sonhando em voltar para Portugal. E com o que ele tinha amealhado no Brasil já poderia cumprir a promessa feita a seus parentes. Já estava rico e casado. Depois de algum tempo, num aniversário dele, eu lhe disse que estava partindo para novas jornadas. Então, ele e a esposa, a Donas Elsa, me abraçaram com lágrimas nos olhos e agradeceram por tudo o quanto eu lhes havia ajudado. Disseram-me que se eu não tivesse família aqui eles iriam me convidar para ir para Portugal, como pessoa da família deles. Depois de alguns meses eles partiram para a Terra de Dom Manuel, o Venturoso. Estavam bem de vida e levando muita saudade de mim e do Brasil.

Este foi mais um enredo da vida, que juntou dois personagens que não se conheciam e poderia dar num filme, nas mãos de um diretor como Anthony Mann, e acredito que encheria grandes salas no mundo inteiro.

Laércio
Enviado por Laércio em 29/03/2013
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