A Epifania do Desempregado
Dizem que o desemprego é a forma velada encontrada pelo capitalismo para fazer com que os desocupados plantem mais flores. Por mais que eu tenha adentrado nas famigeradas estatísticas por livre vontade (após a ida da esposa), nenhum beija-flor encontrara ao menos um resquício de felicidade numa florzinha qualquer por mim cultivada. Muito pelo contrário: acomodei-me num ócio sofrido, bebi cerveja morna com os amigos, estive só e tão desapaixonado com as minhas lembranças, comprei flores artificiais pra minha mãe, lavei a louça todos os dias (para mim, uma distração necessária, além das escritas), respondi muitas mensagens de texto às três da madrugada (menos ainda dos que por mim foram enviados), passei horas intermináveis grudado, quase cirurgicamente, num joystick de vídeo-game, li muito e escrevi na mesma doentia proporção, admirei, ainda que por segundos, femininos lábios alheios encontrados ao acaso num vagão lotado ou do outro lado da avenida (lábios esses quase sempre cingidos por um violento toque escarlate) para depois esquecê-los ao cabo de outros segundos posteriores, reatei as presenças tão acolhedoras dos novos amigos e beijei as bochechas barbadas dos mesmos (sim, eu os beijo). Assisti os piores desenhos animados com a minha filha (sorvendo ao máximo sua presença pequena e sua dicção ainda irregular), assisti aos mais excitantes filmes (de quando em vez, claro) e compareci aos mais violentos shows das mais violentas bandas. Pedi dinheiro emprestado, ah como pedi dinheiro nesses dias estafantes: mãe, irmão, sogra, cunhado, amigos íntimos, os nem tão íntimos assim - e tais dividas financeiras, ainda que de boa vontade, pesa-me nos ombros curvos próprios dos desempregados e na sandice daqueles que admitem possuírem dívidas, sem contudo esforçarem-se por quitá-las. Beijei poucos lábios, mas senti muitos sabores; fui aquecido por poucos abraços, acarinhei poucas peles e perdi-me pouco por entre poucas retinas, mas garanto ter libado intensamente tais sensações como se fosse a última vez que pudesse eu fazer isso. Eu olhava sem ver, sentia sem sentir, mas sorria com todos os dentes... Agora, porém, o inverso é a minha sina - à mim foram ensinadas lições sobre olhar e ver, sentir quando realmente se está sentindo e, contudo, sorrir sem nunca mais ter sido possuído pela sincera vontade de tal ato, ainda que isso seja salutar e agradável (o sorriso). Re-olhei muitas fotografias, re-falei muitos palavrões, re-chorei por horas seguidas e re-senti a angústia que galopava-me nas veias, pra pouco depois ela ir embora e voltar, nas horas mortas da madrugada, entre um gole e outro de iogurte de morango (sim, strawberry yogurt... fui acometido pelo espírito abstêmio de alguém que procura reavaliar a sua vida, buscando o chão que fugira-lhe dos pés). Isto fora, basicamente, os elementos por mim vividos durante o meu desemprego.
Dias atrás, porém, vi-me acordado ás oito da manhã, deitado no sofá depois de uma noite inteira sem dormir, posto à assistir "Mais Você" e iniciando um certo interesse sobre os esquemas práticos da confecção de um bolo formigueiro (rebuscamente chamado de "Mármore Gostoso"), produzido por um confeiteiro gordinho e de aparência oriental, enquanto o periquito (ou maritaca, ou papagaio) verde-amarelado, familiar da apresentadora (influências do RPG) esgrimia a sua voz irritantemente insuportável (aquém da risada da apresentadora, risada essa que ela liberta praticamente à cada segundo), contando uma anedota qualquer sobre portugueses e pães franceses.
Era a epifania que eu esperava, e senti-me num conto da Clarice. "Cara, preciso trabalhar". Entrevistas marcadas pra hoje, saio do meu mundo particular de agradável sedentarismo como quem cerra, de par em par, as pesadas cortinas do espetáculo. De volta ao salário, ás responsabilidades, aos cartões de ponto. Mas isso não quererá dizer que abrirei mão da mania de beijar as faces barbadas dos amigos frescos (frescos apenas, não efeminados), de olhar e ver, de sentir sentindo. Pretendo hoje entrar nas estatísticas, obrigado.