A outra cidade
A globeleza começou aparecendo esporadicamente, depois sua presença foi se intensificando nas telas das TVs, quando dei por mim já era sexta feira.
Carros lotados se fundiam uns aos outros cobrindo o asfalto até onde as vistas podiam alcançar. Além da parentela canina, felina e humana, boa partes dos veículos transportavam enorme quantidade de apetrechos, de utensílios. Parecia um bando de mascates em busca de clientes noutra região.
“Agente vai se ver na Globo” lá estava ela novamente, sacudindo as carnes saudáveis, suculentas, bem passadas, bem delineadas. Hum! De lamber os beiços.
No sábado, outra enorme colcha de retalhos se formou cobrindo as principais estradas e avenidas da cidade escaldante. À noite tudo mudou. O ambiente não era mais a mesmo, uma tranquilidade desconhecida e assustadora passou a permear os ambientes.
Minha cidade havia partido junto com os emigrantes. O êxodo urbano havia feito o translado da essência, da energia, das características comuns de minha terra. Uma forte sensação de estar noutra cidade dominou minha mente. Definitivamente a cidade pela qual eu transitava com extraordinária leveza e descontração não era a cidade “sorriso”. As ruas estavam vazias, o transito fluía com impressionante tranquilidade.
A folia se fez presente em alguns pontos e horários específicos, mas no âmbito geral era como se a cidade estivesse fantasiada de cidade interiorana, parecia um enorme vilarejo. Até as pessoas estavam mais corteses, mais agradáveis, mais sorridentes.
As coisas estavam tão diferentes que um questionamento esquizofrênico passou a pulsar em minha mente – colocando em dúvidas minha sanidade - “será que viajei também?”
Deparei-me com um gringo que puxou assunto com gestos, expressando uma linguagem difícil, mas compreensiva.
- Você daqui? Perguntou o forasteiro.
Aquela pergunta - justo naquele momento - fortaleceu a estranheza, o desconforto mental que me envolvia. Fitei-o desorientado, meu rosto carregava uma enorme interrogação. Mentalmente refiz a pergunta a mim mesmo, em segui respondi com voz baixa.
- Sim! Acho que sou.
O sujeito era turista e não imbecil, percebeu que em minha resposta não havia certeza, tão pouco convencimento e replicou apontando os dois dedos indicadores para o solo onde estávamos.
- Aqui Niterói. Rio de Janeiro?
Dei de ombros, assenti erguendo e abrindo os braços. Confesso que foi uma resposta que eu não gostaria de receber. A incerteza deixou no ar um perfume estranho, desagradável.
O visitante saiu coçando a cabeça e se distanciou vestindo a insegurança que eu havia lhe transmitido.
Os viajantes levaram a alma de minha cidade. O corpo era o mesmo. As ruas, as construções, os estabelecimentos, o espaço físico eram os mesmos, o mapa não sofrera nenhuma alteração, mas a alma, a essência, a energia era outra. A alma agitada, atribulada da metrópole, havia dado lugar a uma energia mais branda. Uma vibração pacata havia possuído o corpo de Niterói.
“quesito harmonia. Dez, nota 10” a potencia vocal, o inconfundível e conhecido timbre informavam que já era quarta feira, mas o sossego interiorano permanecia inalterado. A cidade permanecia “travestida” de lugarejo.
A televisão mostrava a todos os momentos as multidões que se juntavam na região dos lagos, na Bahia, e em outros lugares. Pude perceber para onde haviam arrastado minha cidade, a região dos lagos havia absorvido um bocado de outras cidades, o tumulto, a muvuca, o estresse havia se deslocado para aquelas bandas.
A partir de sábado a alma neurótica de minha cidade foi lentamente voltando ao seu corpo. Na segunda feira ela havia retornado por completo, saiu do estado de coma em que entrara. A falsa cidade partiu deixando saudades.
Um grupo de amigos confabulava animado. Cada qual mais bronzeado que o outro, alguns ainda traziam no rosto a mascara da esbórnia. Um deles me inquiriu.
- e aí! Viajou?
- sim. Respondi de imediato.
Minha resposta não foi percebida, pois eles conversavam inflamadamente. Era quase uma discussão. Cada qual fazia força para externar suas aventuras, seus deleites.
““ Cabo Frio estava bombando”, outros relatavam extasiados sobre os dias passados em são Pedro da aldeia, Búzios, Macaé, Rio das Ostras...”
-Você foi para onde Marco? Perguntou-me um amigo enquanto discorria empolgado sobre as praias, as proezas, as mulheres, os blocos de Iguaba Grande.
-fui para “Sorriso”. Respondi rabiscando um pedaço de papel com a caneta.
-não conheço, onde fica?
-Também não conhecia. Fica aqui mesmo em NIKITI!
-Quando vai voltar lá?
-Muito provavelmente na semana santa.
-Pena! Na semana santa vou para Saquarema.
Senti uma pitada de menosprezo, um tom sutil de superioridade em seu comentário.
No verso do papel rabiscado havia um enorme espaço em branco, onde preenchi com uma frase que fiz questão de sublinha-la e pô-la entre aspas. Atirei-o sobre a mesa onde estávamos e saí tranquilo.
Ninguém deu atenção, mas lá estava escrito.
“Que ótimo, pois minha viagem está diretamente ligada a de vocês. Vão com Deus.”
Livro: Perspicácia - O aprendiz e a vida Página: facebook.com/perspicacia.livro