O velho sonhador

Queria a morte. Ela não veio, espremeu minha vida até o bagaço como se eu fosse uma laranja, como se o caldo escorresse por entre os dedos das mãos e fluísse inutilmente pelo corpo até as unhas dos pés sem impedimento. Ou melhor, como se os favos estourassem como bolhas de sabão lançadas contra o vento.

Os meus pés que no tempo de menino me levavam para outros mundos, estão carcomidos pelo constante atrito com as pedras das estradas. Eles já não esboçam qualquer tipo de vontade. Pelo contrário, passaram a ser dois pesos a mais para serem carregados por mim. Lembro-me bem, eram passos largos, compassados e definidos. Hoje são pés que guardam em suas solas marcas profundas das fatalidades por mim, vividas.

Minha cabeça embranquecida pelos problemas e angústias mal resolvidas ou, quem sabe, por amores mal explicados ou mal escolhidos, parece sem rédea ou autoridade suficiente para dizer: não faça isso ou, faça aquilo.

Confesso! Estou em pedaços. Mas isso é até engraçado. Vou repetir: estou em p-e-d-a-ç-o-s! Assim fica mais destacado. Pode ser que não me vejo assim a olho nu, mas é assim que me sinto neste momento. Um pedaço de dor aqui, um pedaço de dor ali, assim... vou para o remanso.

Olho para o calendário e vejo que hoje é Natal. O dia do meu aniversário, você sabia? Pois é! São anos e anos de vida... ou de morte? Tudo é relativo. Quando menino, nesta data eu ganhava um par de meias - me lembro como se fosse ontem - era sempre da mesma marca - Lupo. Aquilo é que era presente. Coisa dada com amor, coisa ganhada de mãe, escolhida por mãos calejadas lá na loja do mascate Mamede. Homem de sorte casou por procuração. Nunca ouvi falar que Mamede houvesse brigado com a mulher e os seis filhos. Eram almas irmãs, univitelinas.

A morte do corpo, essa a gente engana, dribla, joga pra frente. Toma até comprimidos e injeções e vai enganando aqui e ali. Mas os nossos desejos ah, não tem jeito, não envelhecem, não morrem. Ainda hoje quero correr, fazer coisas erradas, andar de bicicleta, viajar, contar piada e se possível renovar meu desejo de conversar com a morte, já que ela ainda não veio.

Dizem que quando morreremos vamos para o céu. Tenho cá comigo uma porção de dúvidas, será que lá vou poder tomar cerveja? Será que lá vou poder jogar uma pelada com bola de meia? Será que lá vou poder nadar nu? Acho que vou lá pra fora, a noite está tão escura... vou esperar uma estrela cadente para fazer um novo e definitivo pedido. Quem sabe, dá certo?!

Pedro Cardoso DF
Enviado por Pedro Cardoso DF em 21/03/2007
Reeditado em 08/10/2017
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