PASSOS DE ATRIZ

Passos de atriz

Atravessou a rua devagar, lembrando as velhas histórias do rádio. Seus cabelos grisalhos, a pele ressequida, sulcada, pouco lembrava a figura brejeira dos anos 60. Mas ainda tinha a paixão na alma e a vontade de desenterrar o passado e vivê-lo plenamente. Sabia que não era possível encontrar os amigos, muito já mortos, outros vivendo perspectivas completamente diferentes, burocráticas, mesquinhas, medíocres. Ela ainda tinha sonhos, embora sozinha, viúva, quem saber restaurar o que de alegria lhe restava, de novidade, de vontade de descobrir as coisas, de se debater em buscas ainda não realizadas. Estava velha, mas não cansada. E se vivia do passado, quem a poderia acusar? Refletia o resto de luz que iluminava a sua mente e da qual não podia nem queria se livrar. Uma chama frágil, mas densa, que a mantinha viva.

Considerava que suas roupas eram dignas, que o talhe era modesto, mas adequado para a ocasião. Subiu a calçada, meio falseando o pé no salto alto. Nem tanto, o suficiente para uma senhora como ela. Parou por um minuto admirando o velho teatro. Paredes carcomidas pelo tempo e pela falta de manutenção. Mas lá dentro, certamente, pulsava um coração vivo, flamejante. Espiou pela bilheteria, mas não havia ninguém que pudesse auxiliá-la. Bateu à porta, repetidas vezes. Não foi atendida. Parecia tudo deserto. Sentiu as pernas fraquejarem, um suor frio ensopar-lhe a fronte. Encostou-se na parede rugosa. Lembrou dos tempos em que o palco era a sua casa e o estúdio do rádio, o seu lugar de reflexão. As novelas e seus personagens ecléticos. A sua vida passada a limpo, lentamente, densa, verdadeira, inteira. Sorrisos nos lábios, olhares para o diretor, soluços, lágrimas verdadeiras de emoção. O suspirar de corações, o aguardar dos reclames. O bate-papo animado, o encontro enamorado. Tudo ali se passava. Dali, da voz conhecida e bem colocada, à postura digna e austera no palco. Os aplausos. O carinho dos fãs. Hoje, aqui, esperando que esta porta se abra e com elas, o grupo que a espera. Depois, ao reencontrar os amigos antigos e novos, partilhará com eles o doce sabor das palavras ditas e benditas, jogadas à toa, respingando nos ouvidos mais taciturnos, gritando nos corações endurecidos, fazendo balbuciar bocas estremecidas e omissas. Bradando verdades absolutas ou não, protestando, resistindo ou apenas sensibilizando, trazendo à tona a emoção que surge como um rebento na planta que se ergue solene procurando o sol. Ali estará ela, finalmente entre os seus.

As horas passam, as portas não se abrem, nem as cortinas, nem a luz da ribalta se espalha e a ilumina. Apenas o sol fraco do outono, quase inverno. Alguns pingos finos, quase imperceptíveis se espargem feito água benta. Ela resiste sozinha. Alguém se aproxima. Uma moça gordinha, vestida num uniforme comportado, corre, esbaforida, preocupada com o adiantado da hora.

Ela sorri um sorriso de atriz. Bonito, azulado, quase firmamento. Coração palpitante, esperançoso. Solitário consigo. A moça estanca na porta, abre a bolsa sintética, retira uma chave enorme e a enfia na fechadura. A atriz a interpela com voz suave: _Estava esperando você. A moça sorri, mostrando os dentes abertos, amarelados. _Quem bom! Quase me atrasei. Veio para a hora da benção?

Não consegue entender. Tudo fica nublado, obtuso. Teias de aranhas descem na chuva fina, empapando-se dágua. Ela tenta desviar, desvencilhar-se. Está confusa. Pergunta pelo teatro, pelo grupo que encena, pelos artistas que se reúnem para o ensaio. A outra sorri e responde conclusiva: _O único teatro é a hora do descarrego, moça. Isso aqui agora é um templo. E me dê licença, que eu tô atrasada.

Ela ficou ali, parada, patética, quase assustada. Deu uns passos miúdos, delicados, incertos, imprecisos. Uns passos de atriz. E se afastou devagar.

Gilson Borges Corrêa
Enviado por Gilson Borges Corrêa em 20/03/2007
Reeditado em 22/03/2007
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