Crônicas da Esquina ( Lembranças )

LEMBRANÇAS

O dia amanheceu pesado com aquela madorra de ressaca. Uma ressaca que não se justificava, exceto pela sensação. No espelho do banheiro e ainda sonolento, atesto: os olhos vermelhos de noite mal dormida ou de lágrimas contidas, ardendo na saudade das retinas. Mas eu não conseguia farejar-lhe o rastro e tive medo. Desconfiei de que seria um dia sem promessas. Coisas como essas não costumam vingar numa Sexta-feira, dia em geral exultante para almas boêmias como a minha.

Ando pela casa como quem pisa em ovos; a garganta presa sem que eu soubesse o porquê daquele nó inesperado. Visto a roupa do cronista que precisa trabalhar por conta de compromissos assumidos. A cachorra Marrenta observa-lhe os modos e, séria, espraia-se no sofá da sala. Por que os cachorros não falam em segredo com seus donos? O cronista se aperta. Marcela saiu cedo e até o telefone – esse incômodo – não incomoda. O cronista levanta-se e vai à janela. O ar parece-lhe rarefeito e quente. Nas árvores que dão charme à Heber de Bôscoli, nenhuma folha tremula. O padeiro não veio. Não veio o carro do sacolão. Havia um silêncio de morte. Tudo apontava para a inexistência do dia, não fossem os pequenos detalhes que o atualizam: o porteiro defronte, o segurança da rua sentado à sombra e o amigo Pardal que observa, do portão de entrada do prédio, as peripécias do Pingo. A estranha sensação de ausência é forte demais e o dia permanece vazio, suspenso.

O cronista se despede. Penso em descer, mas agora o bar do Costa não apetece. Deixo-me ficar. Converso com a Marrenta que me lambe a perna. Infelizmente não lhe é possível lamber-me a alma ressequida. Tomo um banho frio, mas como o que sinto não é questão de pele, também essa operação resulta inútil e incapaz de apagar o que ainda não se escreveu nítido para mim. Tento voltar à crônica que a essa altura não sei mesmo onde vai dar. Decididamente, o cronista está triste como o pássaro que canta numa gaiola não muito longe daqui, pois posso ouvir-lhe os lamentos e as súplicas que também ele não consegue explicar.

A chegada da noite traz o alento de gente na esquina. Sozinho em meu próprio abraço, quem sabe o calor de amigos não me degelem esse ártico incômodo? Troco de roupa. Desço a escadaria e a pequena ladeira que me conduz à esquina. O bar fervilha, um velho hábito das sextas-feiras. Numa mesa, avisto Marcelinho, Chico, Luciano, Sônia Balão, Jairo, André e Paulinha. Lento, achego-me. O bar não compartilha as mesmas impressões que a minha. Datas não importam a ele que precisa funcionar alheio a tudo. Eu disse datas? Então era isso. Oito de agosto, dia em que muitas almas se sentem esvaziadas. É, estavam todos lá. Menos o Jair. Deus esteja!

Aldo Guerra

Vila Isabel, RJ.

Aldo Guerra
Enviado por Aldo Guerra em 20/03/2007
Código do texto: T419957