Compromissos e os estorvos para cumpri-los
COMPROMISSOS E OS ESTORVOS PARA CUMPRI-LOS
(crônica publicada no jornal "Diário Catarinense" de 20.03.13)
As indicações foram claras, precisas e, acima de tudo, perfeitamente inteligíveis:
- É descer pela Wenceslau Braz, ou Venceslau Brás, dependendo do mapa, virar à direita no primeiro sinal e, na Linha Verde, tomar à esquerda e seguir em frente até a saída para a estrada de Paranaguá e o litoral paranaense. Não tem erro possível.
A estrada para Paranaguá é a referência, dali sabes muito bem como proceder: deixar de lado a fábrica da Nissan, já no contorno da BR-116 no longo trecho em que a estrada se desviou de Curitiba e entregou à cidade o seu antigo traçado, que virou justamente a dita Linha Verde, com um trecho hoje urbanizado segundo o admirável estilo curitibano de urbanizar, contornar a fábrica da Renault e entrar pelo Rio Pequeno adentro até o número 4.000. Ali jantarás.
Jantarias.
O estilo curitibano de urbanizar transformou um pesado e áspero pedaço de rodovia federal incrustado na cidade em uma larga avenida com bulevares, jardins centrais, passeios, ciclovias, quadras de tênis, estações de ônibus, muitas luzes e uma profusão de placas de sinalização. Se a tua avó morasse em Curitiba, perto da Linha Verde, certamente haveria uma placa dizendo-te onde virar, onde entrar, para encontrares a tua doce velhinha. Esse charme conferido àquela língua de asfalto selvagem atraiu, como era de fato o plano, uma quantidade de lojas de departamento, supermercados e tudo de grandioso que se possa imaginar, o que inclui, naturalmente, catedrais neoevangélicas.
O teu problema é que a Linha Verde está apenas parcialmente urbanizada. O teu problema é que, de súbito, tudo escurece, a avenida torna a virar estrada, as placas indicativas somem por completo e começas a desconfiar que já terás passado do ponto de inflexão para a estrada de Paranaguá. O teu problema é que não existem mais sequer as indicações dos retorno e os carros, sentindo-se longe da civilização, não te dão folga alguma na noite chuvosa, enquanto os caminhões sentem-se em casa, livres e soltos.
Há um ponto, no entanto, antes ainda de chegares a São Paulo, em que encontras talvez, por pura dedução "a la" Sherlock Holmes, uma brecha para fazer a volta: um viaduto à frente pode indicar que a saída à direita te leve ao retorno ansiosamente buscado, e te lanças no escuro, num mergulho cego. Por sorte, estavas certo.
Triunfante, retornas sobre o caminho feito e, munido de toda a atenção do mundo, desprezando os carros e caminhões que te dão sinais de luz alta, e até chegam a buzinar com estridência para ti, porque, mais lento que eles, procuras algo como um estrangeiro (como o estrangeiro que efetivamente és na cidade estranha), e atentamente encontras, escondida também na volta, a saída para Paranaguá. Aliviado, aguardas chegar aos caminhos rurais, de barro revolvido graças à chuva que não para, que te levarão ao Rio Pequeno, a um sítio no interior do município de São José dos Pinhais.
É lógico que no meio do caminho havia uma árvore, não uma pedra, que esta o Drummond já noticiou, mas não era bem uma árvore, era uma araucária (claro, não seria outra a espécie), na verdade apenas um pedaço dela, um robusto galho, grosso como costumam ser os galhos dos pinheiros, caído de través sobre a estrada de lama pura no meio da água que despenca.
Decidido, já por uma questão de brio, removes mais esse obstáculo do teu caminho e chegas ao número 4.000 na hora em que terminavam a sobremesa. Chegas encharcado e enlameado até a medula. Mas chegas.
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Amilcar Neves, envolvido com a criação de uma nova novela, é escritor com oito livros de ficção publicados, alguns dos quais à venda no sítio da TECC Editora, em http://www.tecceditora.com.
"Enquanto não fabricarmos nossa própria mecha e nossa própria pólvora, enquanto não adquirirmos uma consciência visceral da necessidade de nossa própria explosão, de nosso próprio fogo, nada será profundo, verdadeiro, legítimo, tudo será uma simples casca, como agora é casquinha, só casquinha, nossa tão apregoada democracia. E se nossos próceres, incluído seu avô, podem dizer impunemente que têm as mãos limpas, isso só se deve a que nosso conceito de higiene política deixa muito a desejar."
Mario Benedetti, Gracias por el Fuego.