REVOLUÇÃO DA CATARATA (Para o meu pai e todos os heróis - pais ou não)

REVOLUÇÃO DA CATARATA

Dedico a todos os homens – pais ou não – jovens e anciãos. A estes especialmente, aos que abriram caminho através dos sertões destes Brasis em beneficio das gerações vindouras. Mesmo que eles nunca saibam o valor dos seus gestos, como é o caso do protagonista da história aqui narrada.

Estava eu ainda no sono da manhã quando toca a campanhia. Era meu pai, desculpando-se pela visita inesperada.

Constrangido, ele é assim – januarense da roça (aqui seria chácara, sítio, fazenda), 85 anos de independência, aventurou-se por esse mundão afora, tendo aportado neste sertão paulista. Forte como um touro (antes da idade do condor), capaz de partir uma tora de madeira com uma só machadada. Um inadaptado `a vida urbana, teve juventude de árduo trabalho, muitas aventuras, pouco juízo, muita capetice e água de alambique.

Neste dia, bateu na porta meio constrangido, talvez por achar que dera pouco e agora precisava de algum. Viajara do interior de São Paulo ao Hospital das Clínicas, para ser operado no mutirão da catarata. Mesmo que exista a possibilidade de resolver de outra maneira, ele prefere se valer do atendimento público, equivocadamente chamado de gratuito.

Pois bem, expôs a necessidade de ser acompanhado por um adulto, do contrário, perderia a viagem. Não adianta insistir para usar telefone, metrô. Ele prefere andar grandes distâncias a pé. Tem horror `a dependência.

Estávamos nós na grande sala de espera. Este - aguardando a pressão baixar, aquele o coração acalmar, um o acompanhante aparecer, a maioria a vez chegar.

`A espera da vez era o caso de meu pai.

Conversa vai, conversa vem, eis que o ambiente virara sala de bate papo. Meu pai bravateava sua saúde de ferro: “Eu num tenho nada - nem pressão, nem diabete, colesterol, coração, pulmão. Só este problema no olho, por isso estou aqui”. A cada item ele ilustrava com a mímica adequada. O nada era especialmente coreografado com a juntada e brusco afastamento das mãos.

Como estávamos perto do QG de atendimento, pensei ter ouvido algo sobre superávit das cotas do dia. A demanda superara o planejado. Alguns seriam despedidos e o atendimento interrompido naquela hora.

Compadeci-me daquela gente, depositada no grande espaço cheio de bancos. Não falei nada porque ouvira sem querer e nada fora anunciado oficialmente. Alarme falso seria uma imprudência.

Qual o quê! Ingenuidade minha achar que aqueles pobres estavam `a mercê.

Uma voz fêz-se ouvir na multidão, clamando por justiça e consideração pelos presentes, `a espera desde as primeiras horas. Todos mereciam serem atendidos, bradava o orador. A população requeria tratamento diferente. O quê o governo pensa que o povo é?

Outra voz logo acrescenta: “É uma vergonha como o povo é desprezado neste país”.

Para resumir, palavras de ordem e protestos embasavam aquela nascente revolução.

Levei um susto quando vi meu pai bem no olho do furacão, como figura central daquela ópera cataratesca, mergulhando no chão com a agilidade de um menino e a leveza de uma pluma, estrebuchando como um porco prestes a ser capado.

Impensadamente eu me saio com essa:

- “O que é isso, pai?”, para logo depois, num naco de ano luz de segundo, cair em mim e ensaiar performance de fazer inveja a Fernanda Montenegro:

- “Paizinho, o que está acontecendo? Ai, meu Deus, ajuda, gente, socorro! Calma, pai, calma!. Ai meu Deus do céu. Enfermeira!?

Incapaz de improvisar script melhor, eu só repetia “ai meu Deus, ai meu Deus do céu ”.

Quedava-me ali, ajoelhada, tentando segurar a sua mão, seu pulso. Não esqueçam ser esta uma tarefa difícil, porque ele estrebuchava como o dito porco apavorado.

De repente, um aviso se faz ouvir lá do QG:

- “Pessoal, o Ministro deu ordem para atender todo mundo”. O Ministro era aquele, sabe? Da cantiga que as mães cantam para as criancinhas de colo: “serra, serra, serrador, serra o papo duuuuuuuuuuu vovôoooooooooo!!”.

Instantaneamente meu pai desincorporou o personagem. Levantou-se, sob meu amparo fingido, tomamos assento lado a lado. Ele olhava triunfalmente seus companheiros revolucionários.

Eu permaneci quieta, posando de natureza morta enfeitando a parede no corredor de cozinha.

Entre dentes, sussurrei no ouvido do velho: “Tenha dó, né? pai!”. Ele retrucou maliciosamente, baixinho:

- Tem que ser assim, minha filha (na verdade, fia). Vocês não sabem de nada, não conhecem o mundo. Guverno? E termina com um gutural: “Ruhm!”

E assim seguimos, no grande teatro, onde escolas fingem que ensinam, alunos fingem que aprendem, hospitais fingem que curam, paciente finge saúde, casais fingem fidelidade, a sociedade finge moral, a religiao finge ser Deus, o poeta finge sua-dor, o governo finge que governa, o povo finge que acredita, alguns fingem trabalho, mas o empregador sempre finge que paga.

Parodio Euclides da Cunha: “Os brasileiros, nos sertões-desérticos desses Brasis, são antes de tudo uns bravos”.

11/08/2005 - a 3 dias do dia dos pais