Breve conversa com Deus

Carlos levantou-se de sua cadeira, pagou a conta e se encaminhou para a saída. Sacou o molho de chaves do bolso, desarmou a alarme do carro e correu para fugir da chuva. Ao puxar a maçaneta assustou-se com um barulho alto que o cegou como se o sol tivesse resolvido lhe bater à porta.

Não se lembrava de ter perdido os sentidos, tampouco se lembrava de ter se sentado no carro, e não tinha a menor ideia de quem pudesse ser aquela pessoa sentada a seu lado. Comera sozinho, como era de costume, não que fosse um homem tipicamente solitário, apenas gostava de se concentrar nos sabores dos alimentos e como era de se distrair com facilidade não misturava dois prazeres tão imensamente agradáveis.

A presença daquela pessoa lhe era estranha racionalmente, mas se deixasse de pensar a respeito tornava-se extremamente reconfortante. Porém não conseguia desligar a mente por muito tempo e algo naquela presença era inquietante, havia algo que lhe emanava, Carlos não sabia dizer o que era, tentou enxergar nos detalhes óbvios qualquer traço humano que pudesse reconhecer: era uma pessoa, disso tinha certeza, mas homem ou mulher? Jovem ou idoso? Alto, baixo, magro, gordo, fraco, forte? Qual era a cor de sua pele? Não sabia distinguir. Passou algum tempo tentando decifrar a presença estrangeira, olhou para suas mãos, suas roupas, sua postura, procurava ver o movimento de seu tórax buscando ar. Da mesma forma como tudo lhe parecia vagamente familiar, também era inacreditavelmente novo. E belo. Acima de tudo era belo e harmonioso.

Foi com este pensamento em mente que Caros finalmente enxergou os olhos da pessoa criatura. Faltaram-lhe palavras para descrever o que via. Tinha todas as cores ao mesmo tempo em que nenhuma, um arco-íris invisível, infravermelho e ultravioleta juntos. E um sentimento.

Mais tarde, fazendo novas considerações sobre o ocorrido, Carlos iria tomar este como o momento de maior clareza em toda sua vida, também acharia irônico o fato deste momento ocorrer somente após sua morte. E como todos os fatos interessantes tendem a ocorrer, durou pouco menos de uma fração de segundo.

- Morri.

- Sim.

- Você existe...

- Sim.

- E você veio me receber.

- Sim.

- Eu sou especial?

- Sim.

- Assim como todas as criaturas vivas, Você as vem receber.

- Estou aqui para responder suas perguntas.

- Eu sei.

- E por que não as faz?

- Você é onisciente.

- Eu sei.

Carlos riu da simplicidade de Deus. Ainda não conseguia focalizar sua imagem, mas isso não o incomodou.

- A minha verdadeira imagem está muito além da sua compreensão, é por isso que você me enxerga dessa forma. Conforme você for se acostumando à nova situação, as coisas farão mais sentido.

- Acho que compreendo.

- Então devemos começar. Suponho que você queira saber o sentido de tudo.

Foi a vez de Carlos dar respostas simples. – Sim.

- Essa costuma ser minha parte preferida... “Sentido de tudo” é muito vago. O que você acha?

- Você já sabe.

- Prefiro que você diga em voz alta. Sendo quem sou é raro que me surpreendam, por isso me concentro em outras coisas enquanto você formula suas ideias.

Tentando absorver aquelas palavras Carlos pôs-se a pensar.

- Hm... Amarmos uns aos outros?

- Use melhor sua criatividade, meu caro.

- Não sei, pra falar a verdade eu sempre gostei de pensar que o sentido palpável era a eterna busca do sentido ideal.

- Como assim?

- Da mesma forma como Você está além da minha compreensão, também está o sentido de tudo, que seria o sentido ideal, então eu chego a uma conclusão confortável de que há um sentido palpável e ele seria justamente buscar a evolução que me faria ser capaz de entender o ideal, ainda que este esteja sempre fora do meu alcance.

- Sua linha de raciocínio é interessante, voltaremos a ela mais tarde, precisamos primeiro estabelecer algumas bases para o diálogo. Por hora há algo mais que você queira me perguntar?

- Sempre pensei que haveria milhões de perguntas... Por que eu morri?

- Temo não poder lhe dar uma resposta satisfatória a essa pergunta.

- Por que não?

- Você não se satisfaria com “todos têm que morrer um dia...”.

- Eu sei disso, mas por que eu? Por que hoje?

- Você não acredita que eu tenha um plano, Carlos, se você se fecha às possibilidades, não há muito que eu possa fazer. O livre arbítrio é uma das coisas mais belas que eu criei, se você fosse capaz de enxergar o que eu enxergo tudo faria sentido. Você morreu porque chegou sua hora, é só o que eu tenho a dizer sobre isso agora.

- Mas Você criou tudo! Tudo o que existe é obra Sua!

- Sim, eu sou muito criativo.

- Então Você poderia me fazer entender.

Mas Carlos sabia que não haveria discussão.

- Por que então tem que doer tanto? Viver, eu quero dizer... Por que viver dói?

- Porque você está vivo.

A pergunta silenciosa foi respondida em seguida.

- A resposta pode parecer clichê, e é bom que seja assim, significa que vocês já entenderam a lógica do jogo, perdoe a expressão, a luz foi criada para se contrapor à escuridão, o som ao silêncio, a dor ao prazer; sem um não há entendimento do outro.

- Mas poderia haver, Você é onipotente, Você criou a existência em si, com a Sua vontade nós poderíamos entender o bom sem a presença do ruim.

- Entenda, caro, a importância do aprendizado. É claro que eu poderia, mas não teria nenhum significado, é justamente na dor que vocês crescem, nos erros que vocês aprendem, o sistema é perfeito em equilíbrio, o problema começa quando vocês perdem a perspectiva de...

- Que perspectiva? – Carlos o interrompeu – Nós não sabemos onde tudo começa nem onde vai parar...

A divindade sorriu em acordo.

- Justamente, criança, se você não sabe o caminho, como deve trilhá-lo?

- Como?

- Pense.

- Eu não saberia por onde me nortear.

- Esse já seria um bom começo. Pense no que você deveria seguir como norte, uma característica sua.

- Procurando algo de bom em mim?

- Se isto for uma pergunta, eu lhe retruco outra, o que seria seu melhor?

- Eu não sei.

Passaram alguns instantes em silêncio.

- Você deve saber que eu fui educado católico...

- Sim.

- É o caminho que está na bíblia?

- Você se lembra do porquê de ter abandonado a fé católica?

- Eu deixei de acreditar.

- E por que isso aconteceu?

- Nada fazia sentido.

- E faz sentido que EU não faça sentido?

- Não.

- Então você acha que o SEU melhor deve estar escrito num livro no qual você não vê sentido?

- Quer dizer que a bíblia está errada?

- As pessoas vêm a mim por diferentes caminhos. Há aqueles que me alcançam através dos livros assim como há aqueles que se distanciam pervertendo suas palavras. Eu reconheço as intenções dos que escrevem, as boas e as más. A ideia é que vocês cheguem a mim. Existem aqueles que só me sentem em preces. Você falou sobre meu poder e minha sabedoria, você se esqueceu do mais importante, é uma palavra bonita ONIPRESENÇA. Eu criei tudo, de fato, mas não criei a partir do nada, criei a partir de mim, e assim sendo, tudo o que existe guarda um pouco de mim em si, inclusive você. Tudo o que existe tem o potencial de encontrar meu caminho. As pessoas são diferentes e por isso há diferentes caminhos para me alcançar. O SEU melhor não é necessariamente o que seu próximo tem de melhor em si, portanto não faz sentido que todos sigam um único caminho ignorando o próprio potencial de encontrar a mim em si mesmos.

- E como eu sei se atingi esse potencial?

- É simples. Como você se sentiu quando teve consciência de que estava conversando comigo?

- Pleno, realizado, feliz.

Deus sorriu: - Você está amadurecendo.

- Então qual é o sentido?

- Estamos chegando lá. Há pessoas que vão sentir sua falta, você quer saber sobre elas?

- Posso? Na verdade não, não quero perguntar sobre elas, de alguma forma eu sei que não há necessidade, como isso é possível?

- Você está começando a se reintegrar no equilíbrio cósmico, o que há de mim em você começa a reverberar no que há de você nos outros.

- Pra onde eu vou daqui?

- Há algum lugar no qual você precisa estar agora?

- Não, não foi isso o que eu quis dizer, eu estava falando de céu e inferno.

Deus apenas riu. Depois de um tempo retrucou:

- Você já passou pelos dois. – E percebendo o olhar confuso do rapaz continuou: Céu e inferno são concepções humanas assim como o tempo, vocês os personificam enquanto estão vivos na tentativa de alcançar aquele sentido ideal do qual você falava antes.

- Então o que acontece depois que a gente morre?

- Está acontecendo agora.

- Acontece o mesmo com todos?

- Como eu já disse antes, cada pessoa é diferente, cada uma delas precisa passar por suas próprias experiências, essa é a sua.

Carlos teve a repentina impressão de que não teria a resposta que queria dobre aquele assunto.

- Você diz que todos nós precisamos crescer... Pra que?

- Mesmo a maior clareza humana não é capaz de entender todas as coisas da forma como foram concebidas. Nunca crio nada completo, vocês precisam trilhar seus próprios caminhos para evoluir, faz parte do sentido da vida.

- Não existe um sentido, existe?

- Prossiga...

- Quer dizer, um sentido universal, cada pessoa tem seu próprio sentido, mas deve haver um ponto em comum, uma missão a cumprir?

- Como um destino? Isso não feriria o princípio do livre arbítrio?

- Feriria? Não sei, não, talvez? Não sei.

- Qual seria o seu destino, Carlos, sabendo que você não realizou tudo o que queria, mas terminou no momento em que deveria.

- Levando em conta tudo o que eu sempre achei que iria, que precisava fazer em vida, só posso pensar que meu destino tenha algo a ver então com a minha morte, mas que conquista eu poderia realizar uma vez morto?

- Você ficaria surpreso, no grande esquema universal tudo acaba acontecendo por um motivo, por mais aleatório que possa parecer tudo acaba ganhando seu propósito.

- Então existe de fato a predestinação...?

- Não exatamente, não como vocês a percebem. Um termo mais preciso seria uma espécie de para-pós-determinação. As coisas acontecem sem que haja algo que as force a acontecer e só depois do acontecimento eu imagino que frutos podem advir daquilo e mesmo assim não é determinado, eu apenas apresento possibilidades, cabe a vocês escolher qual possibilidade se torna real e quais ficam esquecidas.

- E os acontecimentos naturais? Os que não dependem de escolhas humanas para acontecer? Como Você decide o que vai acontecer, quando, onde e com quem?

- Eu não decido. A criação do mundo foi um pouco mais complexa do que simplesmente “Cria-te”, levou muita reflexão, algumas tentativas e erros – Sim, eu também erro, todos estamos vivenciando um constante aprendizado, foi por isso que eu criei vocês, não foi um capricho divino, mas uma ferramenta desse aprendizado. Vocês são variáveis do algoritmo em que a existência se pauta e dentro desse cálculo existe espaço para o comportamento independente, os seres inanimados também fazem escolhas, por assim dizer, e essa é a beleza da criação. De forma análoga você criou sua filha para que ela pudesse viver sem sua interferência direta. Eu fiz pouco mais do que faz o naturalista que monta um formigueiro para observação, fazendo-lhes à minha semelhança de tal maneira que vocês pudessem chegar a mim, eu não sou inatingível, vocês me alcançam quando fazem o que faço.

Numa nova onda de clareza Carlos encontrou sua meta final, era isso o que Deus queria que ele soubesse desde o princípio.

- Justamente, meu filho, sendo assim, qual então é a resposta da sua pergunta fundamental?

- De forma verdadeiramente altruísta a ideia é que se faça do mundo um lugar onde se permita que tudo e todos possam cumprir seu caminho. A própria felicidade leva a Deus, a felicidade alheia leva à plenitude...

- Bem colocado.

- Foi para isso que fui criado.

- De certa forma sim.

Carlos tornou a olhar para a divindade, ela havia desaparecido, em seu lugar havia tão somente seu próprio reflexo, ele tinha chegado a seu destino. E assim a fração de segundo chegou a seu fim.

Taís Gollo
Enviado por Taís Gollo em 19/03/2013
Código do texto: T4197234
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