do limbo

Havia uma espécie de divã, mas não desses da psicanálise – digo isso porque não era de couro. Gruda e sua a pele, escorrega na roupa, gela de ar condicionado, mas é disso que são feitos os de consultório. Era mais parecido com aquele divã da dona Cintia, da casa 44. Acho que é lá que ela se bota nua pro doutor Heitor – não se leva pra cama do quarto esses homens que se vão lá pelas 3 da manhã. Mas meu divã era mais inocente que isso. O tecido era claro, como os dos sofás em casa de gente mais velha e gentil, com pregas de botões, à moda antiga. Não vi outros estofados, só uma poltrona bem mais amaciada, perto de uma porta dessas que se parecem com janelas, meio oriental. O dia estava claro, mas sem luz – branco. Era um daqueles horários em que a madrugada ainda se arrasta numas nuvenzinhas, deixando ver um dia que ainda não sabe se amanhece mesmo. A cigarrilha impregnada às paredes era assumida, mas tinha um cheiro de calçada molhada que passava por um caminho fininho de ar, nem sempre perceptível – a quem nunca esteve no interior, fica como não dito. Tio Gabriel apareceu num corredor estreito, do outro lado do cômodo, mas acho que esta casa não era dele. Estava bem mais jovem do que eu me lembrava – acho até que ele já tinha morrido, não sei o que fazia lá. Sentou-se no divã, nunca tinha visto uma pessoa destoar tanto de um móvel. A casa não era dele mesmo.

Era como estar num mercado novo tendo já visto outros mercados. Os enlatados estão num corredor intermediário, os refrigerantes mais ao fundo, uma área hortifrúti… A disposição é a mesma. Os adornos é que são outros. Alguns mercados têm placas grená escritas em Arial Black, outros aquela decoração em madeira com preços anotados em lousas, como nos cardápios de restaurantes que vendem feijoada. Já estive num cômodo assim, mas talvez fosse de outra cor. Talvez tivesse uma praia lá fora – e aí não haveria o cheiro de calçada molhada do interior. É só que já estive lá milhões de vezes com tios, amigos da rua e gente que eu conheci no vôlei. Já estive lá até mesmo com empresários engravatados que eu devo nunca ter visto. E é sempre a primeira vez. Já foi chácara, ponta de serra, cidade de pedra, península… Esta casa já esteve até mesmo no meio de um lago. Mas esse divã fica lá, recebendo minhas visitas escancaradas pelo mesmo céu branco, sem luz. As coisas sempre aparecem mais no branco, mesmo que se não iluminem.

Tio Gabriel incomodou-se porque sua barriga caía por cima do cinto e porque sentia o rego de fora, mesmo sabendo que ninguém olhava. Ele era maior que as roupas que usava, só isso. Poderia se ter resolvido, mas morreu antes de comprar roupas maiores. Pensei nisso todas as vezes que conversava com ele. Mesmo quando da vez do divã. Aí esqueci de ouvir que é que ele dizia, mas também, pudera, eu já sabia o que ele diria. Eu sempre sei o que dizem as pessoas no divã. Mesmo os empresários engravatados, sou quase eu dizendo pela boca dessa gente. Fica assim, pelo que se vê deles. Aos que dizem – e usam roupas maiores, claro – é possível ter uma chance de serem ouvidos, no divã, com a própria voz. Trata-se de como eu me lembro, mas não te preocupes: a gente se espanta com as coisas que já sabe quando sonha.

Do Limbo (aprendi com um amigo isso de colocar o título no fim).

Adriana Campos K
Enviado por Adriana Campos K em 19/03/2013
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