um poema

Uma moleca desembestada me cortou a frente hoje, na rua. O calor abafado e estúpido da periferia asfaltada, imunda, fermentando o café fraco, barato e morno que ainda me batia no bojo. Estive a ponto de passar por cima daquele rosto lânguido, pisando as mãos pretas e miúdas estendidas na sarjeta. A pobre soltou um punhado de umas flores ridículas dessas que se arranjam em canteiros nas portas de instituições financeiras com ar condicionado. As boninas se agarraram na correnteza das valetas de drenagem, a caminho do sumidouro. Agora me diz: Vai fingir que não viu? Se isso não é um poema, matem-me. Pois era já poesia quando aconteceu, quando vi e quando contei – ainda que sob a minha mania de prosa pragmática, travestida no léxico mais grotesco que pude. O poeta só faz parar e contar aos que passaram reto das coisas bonitas – porque poetas não conseguem ignorar a beleza. Os poemas não são versos. Não são métrica ou rima. Os poemas são uma menina pretinha no caos da urbe. São as flores com que ela enfeitou o bueiro. Não importa quantos idiotas passem reto por ele, que digam mal da estrutura, da cadência, ou dos vocábulos. Um poema é um poema – e há de ser flagrado por um poeta.

Adriana Campos K
Enviado por Adriana Campos K em 19/03/2013
Código do texto: T4196746
Classificação de conteúdo: seguro