Os movimentos não simulados
Ontem, eu estava tirando do lugar os livros da estante numa livraria. Não sei de onde veio, é só uma mania. As pessoas tentando falar baixo, as crianças entre almofadas e grandes brinquedos de madeira, o chão entapetado – e se alguém encontrar algo mais convidativo…! – meia luz bege, cheiro de lanchonete cara, mulheres de cabelo curtinho e vestido estampado. Achei um Fernando Sabino de capa mole e branca. Estava só ele. Há escritores de uma bancada da própria coleção. Há escritores dando o rosto à editora. Este era mole, branco e só.
O ritual é o mesmo: Capa, primeira página, 4 frases apanhadas em qualquer canto, contracapa – não pela capa, mas está feito o primeiro julgamento do livro. Havia um texto que poderia não ser grande coisa, mas esses episódios que sugerem 3 coisas precisam ser acompanhados até o fim. 3 conselhos, 3 pessoas, 3 visitas, 3 opiniões… Dito que são 3, não há quem se aquiete antes do terceiro. Eram 3 comentários, um de cada amigo do Sabino que opinou sobre a publicação do romance, escrito aos 22 anos pelo escritor.
Aqui fica pregado um susto: mudar de parágrafo sem ter falado as 3 coisas. Eu prometo que conto, sem grande ensaio. Conto até o fim. O bom leitor há, como sempre, de duvidar da palavra do escritor – ainda mais sobre o que se escreve do que já foi escrito sobre outra coisa escrita. O primeiro amigo sugeriu uma leve revisão ortográfica, o segundo defendeu a originalidade do romance à sua época. Não sobrou opinião para o terceiro rapaz, que transbordou em entusiasmo: Quem me dera ter um romance escrito pelo jovem de 22 anos que eu nunca mais serei!
Hoje eu encontrei uma garotinha de 9 anos que quis me contar uma história. A narrativa tinha jeito daqueles textos que são escritos no sentido único do correr das linhas. A menina inventava a história como se fosse obviamente daquele jeito. Era sobre um dia em que ela saiu para passear e ouviu uma voz. A voz de um corvo – e ela fez a ressalva de que sabe que corvos não falam na vida real – que procurava pela “Terra dos Viva Melhor”, onde as pessoas podiam fazer pedidos – sim, eram 3 também – a serem realizados magicamente. Ao final da história – seria plágio contar tudo, um estrago não ouvir da boca da menininha -, o corvo é transformado em um garoto, com quem a menina se casa.
“E depois disso, só para não ficar igual a todas as histórias, nós vivemos juntos para sempre, mas aqui tem uns desenhos do que aconteceu depois.” Ela me estendeu um papel de rascunho com rabiscos em canetinha hidrocor. Havia 3 desenhos – isso é coisa dela, ela é que desenhou 3 – : o primeiro tinha uma mulher e um homem de cabelos pretos, com uma bengala cada um; o segundo trazia os mesmos personagens em cabelo cinza, cada um com duas bengalas; o terceiro vinha com os tais personagens, cabelos quase brancos – não sei onde ela foi arranjar canetinha dessa cor -, cada um com um andador. Acima de cada desenho, a inscrição “30 anos depois…”.
Um bloquinho de cinco folhas de rascunho e sulfite colorido presos em fita crepe e caindo aos pedaços: Capa, corpo, contracapa – com direito a resumo, nome de coleção, autor e ilustrador. A menina que eu fui quando tinha 9 anos e nunca mais vou ser. Eu perguntei a 3 amigos do sentido da Língua e da Literatura. O primeiro disse algo sobre historiografia, identidade, manifestação cultural e memória. O segundo disse que escrever é como tirar fotografias de dentro de nós mesmos – e pediu para lembrar do armário que toda casa tem, abarrotado de fotos do tempo da película, reveladas, em tom de nostalgia. O terceiro nos gravou este vídeo: http://www.youtube.com/watch?v=bonUMnPNXnw
Em nome da Língua e da Literatura, porque é disso que somos feitos.