tradição
Estava a lavar a louça naquele mesmo asseio de sempre. Chegava a me botar aflição nos dedos tocar copos tão limpos. Oitenta e tantos anos, não para quieta. Há jeito certo de levar cada ritual. A louça, a costura, a novela, os chinelos, a bengala. Quando se deu conta de mim, largou qualquer coisa, alcançou-me num abraço. As pálpebras eram duas sacolas amarrotadas, fraquejando, fracassando em conter aquela aguaceira toda. Tremulavam os braços descrentes de que, afinal, eu estava ali. – Sônia veio me pintar os cabelos inda hoje, mas deixou passar brancos esses aqui. Acontece que ela não anda na mesma vontade de lá pra cá, sabe? – A vizinha, uma senhora magricela que cheirava a cebolinha e adorava bolinhos de chuva. Era de caprichar em duas coisas: fofoca e jardinagem. – O marido foi-se mesmo daqui? – Meu interesse era aquele que a gente mostra pras crianças que contam do dia na escola, enquanto se acredita pensar em coisa mais importante. – Foi não, vivem os dois de estranhamentos, enfornados na casa. – E aqui me acabara o assunto: Vamos almoçar? Ela enxugou as mãos. Preciso mudar de roupa.