Meu Piano Alemão

Quanta falta ele me faz! Se estivesse aqui, estaríamos curtindo belas músicas como costumávamos fazer ao final da tarde. E os nossos sentimentos em comunhão nos levariam ao mundo dos sons sucessivos, do infinito mundo da harmonia. Olho para o lugar vago e um vazio se me percorre os caminhos ocultos da alma, num lânguido gemido de perda, de distância, de falta de presença, da sua meiguice quando carinhosamente o afagava, embalada nos braços da melodia.

Esse lugar, a um canto do salão, perdeu o requinte de nobreza. O instrumento exibia em seu porte características de estrutura europeia do século XIX. E como era bonito! Um “designe” simples, apresentando contornos delicados sobre uma textura em ébano, realçava um teclado de marfim branco entremeado de teclas pretas, pronto para desferir os mais harmoniosos arranjos. Uma pequena placa de metal fazia referência à marca Dohrn, alemã, e à data de 1732. Infelizmente, o tempo torna-se impiedoso quando resolve destruir o que se constrói. Aos poucos, o belo piano foi envelhecendo cada vez mais e não acompanhou o ritmo da tecnologia moderna. Isto acontece em todos os setores da vida e, quando menos esperamos, temos perdido o que mais amamos.

Meu piano foi presente de meu pai. Já bem perto de sua passagem para o andar de cima, chamou-me e perguntou:

_ Você ainda quer o piano que desejava possuir?

_ Sim, meu pai, quero muito. Mas não tenho condições financeiras para comprar, trata-se de um instrumento muito caro mesmo sendo bastante antigo. Dizem até, que quanto mais velho mais caro e procurado pelos colecionadores que gostam de museus.

_ Pois veja o preço e se realmente gostar, me diga que lhe darei o dinheiro. Sei que sempre gostou de música, razão por que lhe dei o acordeon, mas o piano é o instrumento de minha predileção. Adoraria vê-la tocando uma valsa daquelas antigas que você sabe.

Naquele momento, um misto de alegria e tristeza aninharam-se no meu coração. Alegria, por realizar um desejo de há muito aspirado; tristeza, pela circunstância em que tive a chance de realizá-lo. Meu Deus! Como é a vida!... Meu pai não chegou a ouvir-me tocar no belo instrumento sua valsa preferida, mas sempre que a executo, uma lembrança traz-me de volta aquele seu desejo - a valsa “Fascinação” - e como era portador de uma bela voz, sempre a cantava no banheiro. Esta foi uma das músicas que mais toquei em toda a minha vida, dedicando-lhe e agradecendo-lhe tão valioso presente. Ainda hoje, quando a dedilho no teclado eletrônico e me remonto às doces lembranças, é para meu pai que estou tocando.

Comecei a conviver com as escalas musicais aos doze anos de idade, quando aprendi a tocar Harmônio de Igreja, no colégio interno. Depois, estendi meus conhecimentos ao acordeon durante algum tempo. Não cheguei a ter um curso completo de piano, apenas dois anos com uma professora particular e mais dois no conservatório de música Alberto Nepomuceno, aqui em Fortaleza, o suficiente para viver momentos felizes ao embalo de músicas românticas e alegres, distraindo mágoas e aliviando estresses, sobrevivendo às intempéries. Por algum tempo, apresentei-me em eventos e durante vinte anos ininterruptos, levei a boa música ao salão do Colégio Estadual Justiniano de Serpa, na hora do recreio dos professores e nas comemorações, onde ministrava aulas de Português, Literatura e Redação.

Em casa, ao final da tarde, hora em que o sol conta segredos, descamba no horizonte e deixa em minha alma uma doce melancolia, sentava-me ao piano e a poesia brotava em meus dedos sonora e divina, numa cascata de sons eruditos preferencialmente Chopin, Bach, Beethoven, Schubert, Mozart, Strauss, Liszt, Vivaldi, Tchaikovsky e outros gênios musicais. Porém a música romântica, os boleros, os tangos, as canções, estas tinham o poder de me transportar aos horizontes das saudades. E o piano acompanhava-me nessa viagem intersentimental, compartilhando de minhas alegrias, mágoas, saudades, ansiedades, emoções cujas lágrimas transformavam-se em semicolcheias cristalinas derramadas em dedilhados, glizandos e pianíssimos.

Hoje estou aqui, em um belo final de tarde, de frente ao lugar vago, deixado pelo meu Dohrn, após tantas recordações, no afã de procurar consolo nas ondas sonoras de um piano eletrônico.

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Maria de Jesus Fortaleza, 17/03/2013.

Maria de Jesus
Enviado por Maria de Jesus em 17/03/2013
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