Mari & Lene

Sentou-se após o terceiro atendimento. Já podiam ser 9h45. O dia mal havia começado e ele já se sentia cansado. Natural, mais de 70, era isso que podia esperar de si mesmo. Mas também havia a indiferença da mulher. O café da manhã já não tomavam juntos há muito tempo. Na verdade ele nem queria saber se ela continuava dormindo. Como ela certamente não iria querer saber se ele já tinha saído. Só que aquilo que não o devia aborrecer, apesar de curtido dentro dele, jamais deixaria de o incomodar. Haveria de ser, portanto, um provável componente daquele cansaço que já se tornara também habitual.

A atendente entrava agora com a ficha do próximo paciente. Na verdade eram duas pacientes.

- São as gêmeas, Dr. Pacciolo.

- Sim, mas acho que é a primeira vez, não é isso? Não me lembro de ter atendido gêmeas há uns 5 anos.

- Só que é um caso meio atípico, como o senhor diz. Elas têm 81 anos!

- Ah, é? Puxa! Peça-as pra entrar.

Marieta e Marlene eram seus nomes. O médico notou que a semelhança física ainda era bem acentuada. A altura do corpo e a sua compleição, como também a expressão facial, eram praticamente as mesmas. Imaginou que se tratasse de pessoas que se cuidassem com esmero para chegarem até ali daquele jeito. E lúcidas.

- Tenho aqui a ficha apenas da Marieta, observou o médico.

- Sim, doutor. Minha irmã apenas me acompanha.

- Muito bem, D. Marieta. O que a senhora sente?

- A minha irmã poderá lhe explicar.

- Espero que não se importe, mas eu prefiro que a senhora mesmo me diga.

- Doutor, a minha irmã conhece tudo sobre mim. Além do mais, se expressa melhor que eu.

- Não duvido disso, embora já tenha percebido que a senhora também se expressa bem. Só que, a partir do que a senhora for me dizendo, vou fazendo, como já estou fazendo, as minhas avaliações. O timbre de voz, o esforço para falar, o movimento das mãos, dos olhos, etc. Sem falar que prefiro que a senhora mesma responda as perguntas que vou lhe fazer.

- Mas nunca foi assim.

- Mas comigo será.

- Marieta, vamos embora, interveio Marlene, já se levantando.

- Não desejo ser arrogante, mas fiquem à vontade, retrucou o médico.

- Não voltaremos mais aqui, Dr. Pacciolo, disse Marlene, já de mãos dadas com a irmã e mostrando-se irritada. E vou levar esse caso ao Conselho Regional, onde o senhor será denunciado por mau atendimento a pessoas de idade avançada.

- Não me preocupo com isso. Estou dentro das minhas funções e recomendações médicas.

- Passe bem, doutor, manifestou-se secamente Marlene.

- As senhoras também.

Pacciolo teve vontade de rir, o que há muito não fazia. Mas não seria recomendável que a atendente, entrando de repente, o surpreendesse sorrindo após a saída repentina das duas senhoras. De qualquer forma, o cansaço havia acabado. É certamente um caso de lesbianismo. A Marlene deve cuidar da outra há pelo menos 65 anos. Se tudo tiver começado aos 15. O jeito de segurarem-se as mãos, a Marieta entrando na frente da outra e esta esperando que Marieta primeiro se sentasse. Só faltou puxar-lhe a cadeira. Pacciolo divertia-se com esses pensamentos que não teriam durado mais que 5 segundos. Nem pensava que pudesse estar enganado.

O táxi não tinha demorado. Mal abriram a porta do pequeno apartamento, jogaram-se no sofá de dois lugares que havia na sala, tendo em frente uma TV de tela plana, 42”. Estavam ainda desgastadas. Mas não seria por isso que não haveria clima para um beijo caloroso do tipo que acontecia quando tinham 30 ou 40 anos. Testemunhado pelo mesmo sofá onde aconteciam todas aquelas carícias de que certamente já não se lembravam.

- Não liga não, Mari. Amanhã te levo a um outro médico muito melhor que esse velho bobão.

- Tá bem, Lene, tá bem, respondeu Marieta baixinho, as mãos segurando afetuosamente as da irmã. Os dois rostos parecidos muito próximos.

Rio, 13/03/2013

Aluizio Rezende
Enviado por Aluizio Rezende em 13/03/2013
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